sexta-feira, fevereiro 25, 2005

por André de Oliveira
Acabo de chegar do Serviço de Atendimento ao Consumidor. Fui renovar minha carteira de motorista. Cheguei às cinco e meia da madrugada e saí de lá às onze e meia. Tudo graças ao anúncio da nova lei que obrigará o indivíduo, a partir de meados de março, a assistir a aulas e ser aprovado num teste teórico para conseguir sua nova habilitação, o que impedirá o sujeito de trabalhar por pelo menos uma semana. Para evitar tamanho transtorno, todos querem a renovação já.

É por essas e outras que eu adoro a burocracia estatal e as inúmeras leis constitucionais, que se contradizem mutuamente, possibilitando um número infinito de interpretações. Uma verdadeira maravilha. Talvez Lula ficasse satisfeito se me visse lá sentado, com meu livrinho do Meira Penna, escondido entre as pernas – já que poderia ser linchado se exibisse o título Opção Preferencial pela Riqueza em público – e rezando de tempos em tempos para que aceitassem minha carteira de identidade desatualizada. Um quadro realmente patético e melancólico.

À minha direita, as seis primeiras pessoas da fila conversavam sobre educação. Eram humildes, a maioria guardava lugar para seus patrões. Queixavam-se da falta de respeito dos filhos para com os pais. Diziam que os deles ainda eram criados à moda antiga, mas que já não aceitavam suas ordens e chegavam inclusive a ameaçar dar queixa na polícia por terem levado uma simples surra de chinelo. Gostei da reposta de um deles: “Se quiser ir, eu mesmo o levo, mas vou lhe batendo até lá para não deixar dúvida”.

À minha esquerda, pessoas de um nível social mais alto criticavam a lei que estava causando todo aquele tumulto. Mas, como sempre fazem os brasileiros, erraram o alvo: livraram a cara do presidente, acusando algum possível deputado, que provavelmente estaria se enriquecendo com aquela medida. Jamais passou pela cabeça deles que aquilo poderia ter nascido do simples desejo de mandar, de interferir e controlar a vida dos outros, como se faz em todo país de característica paternalista. Um deles começou a se queixar que uma coca-cola custa três reais em Porto-Seguro, um roubo! Imediatamente um outro lembrou que, na mesma cidade, por outro lado, há frutas e sobremesas deliciosas baratíssimas. Comecei a delirar. Imaginei que Meira Penna não estivesse apenas impresso no meu livro, mas vivo e ensinando-lhes que é exatamente por isso que a economia de mercado é tão boa e é tão difícil existir um verdadeiro monopólio quando não há interferência do Estado. Quem não tem dinheiro para comprar refrigerante, pode tomar um delicioso suco de manga.

Naquele exato momento, li um trecho em que o autor cita Mises: “Os amigos da paz consideram nossas guerras como conseqüência do imperialismo capitalista. Mas os tenazes promotores de guerra da Alemanha e da Itália denunciaram o capitalismo pelo seu pacifismo burguês. Os pregadores de sermões acusam o capitalismo de desintegrar a família e incentivar a licenciosidade. Mas os progressistas põem sobre o capitalismo a culpa pela preservação de alegadas regras obsoletas de repressão sexual. Quase todas as pessoas concordam que a pobreza é resultante do capitalismo. Mas, por outro lado, muitos deploram o capitalismo por satisfazer prodigamente os desejos dos homens que querem maiores amenidades e uma vida melhor, acusando-o de um materialismo grosseiro. Essas acusações contraditórias contra o capitalismo se anulam mutuamente.” Lembrei de Chesterton, que, em Ortodoxia, diz exatamente o mesmo do Cristianismo, e das acusações contraditórias que fizeram contra Jesus Cristo antes de ser levado a Pôncio Pilatos.

O brasileiro precisa aprender que altruísmo imposto pela polícia não é altruísmo. E as únicas outras duas alternativas são: promover a liberdade individual ou o controle das consciências alheias. A intervenção estatal não compromete apenas o desenvolvimento material, mas também o espiritual.

A diferença básica entre socialismo e capitalismo não está no fato do primeiro lutar pela justiça e o segundo promover a injustiça – porque ocorre exatamente o oposto -, mas sim no fato do primeiro exigir, para o seu devido funcionamento, que todos os homens sejam perfeitos, tanto quem manda quanto quem obedece, tanto governantes quanto governados, enquanto o segundo considera os defeitos humanos como uma realidade e até se aproveita deles para promover o bem comum, sem, com isso, impedir que surjam virtudes em lugar dos vícios, ou seja, mesmo que todos os homens se tornassem altruístas não haveria nenhum obstáculo para a manutenção da ordem capitalista.

Ah, antes que eu esqueça: aceitaram minha certeira de identidade desatualizada. Ufa!

segunda-feira, fevereiro 21, 2005

por Mauricio Amaral

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor as montanhas e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, neste caso, é a destruição; a guerra, a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. (...) Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

O texto, naturalmente, é de Machado de Assis, que fala através de Quincas Borba para o atento mas limitado interlocutor Rubião, que chega ao fim da história enlouquecido pelos acontecimentos que se desenrolam. No fim, da boca de um Rubião enfermo, moribundo, o que se ouve é a reprodução insistente daquele postulado metafórico: ao vencedor, as batatas. As batatas são a premiação pela vitória, ou a garantia da sobrevivência mesma, depende do ponto de que se observa. Mas, evidentemente, Rubião desperdiçou a oportunidade de fazer a grande pergunta: e se não há batatas em abundância lá adiante para serem repartidas? Um bom discípulo de Quincas Borba poderia explicar que, neste caso, tanto os despojos dos vencidos, como as próprias batatas, seriam motivos de guerra dentro da tribo vencedora, que, provavelmente, se dividiria para repetir a operação. Tudo de acordo com a idéia humanitas – princípio elaborado e defendido pelo mestre.

E o que tudo isto tem a ver com o carnaval da Bahia? Nada, provavelmente. Exceto por alguns lampejos que perpassam a minha cabeça fora de sintonia com a axé music e os seus montes de reis e rainhas. Lampejos que provavelmente não conseguirei explicar, mas que, ainda assim, levaram-me a escrever sobre o assunto.

O carnaval de Salvador está cada vez pior. Além das “músicas de adestrar macacos”, na feliz expressão de Marcelo Nova, agora temos que agüentar aprendizes de Duda Mendonça espalhando outdoors de uma cretinice ímpar, nomeando os cantores-destaque, as cantoras-revelação, os blocos preferidos, tudo uma semana antes de acontecer a festa. Não fosse um marketing de oitava categoria, poderiam os seus autores passar a fazer previsões econômicas, tendo em vista o percentual de acerto dos prognósticos. O maior investimento, a se medir pela quantidade de cartazes, foi em cima de uma banda de nome “rapazola”, cujo vocalista se chama Tomate (pronto. Aqui talvez já haja o ponto de aproximação com minhas alucinações. Batata, tomate...).

Não sei se os argentinos se orgulham de ser o povo mais antipático do mundo, mas o fato é que os baianos enchem o peito para dizer que Salvador faz o “melhor carnaval de rua do mundo”. E adoram contrapô-lo ao do Rio, “elitista” e “para inglês ver”. Os cariocas, por sua vez, ignoram a disputa e investem no glamour do sambódromo. Minha avó diria, com sabedoria, “dou um pelo outro e não quero troco”. Boa briga. Ao vencedor, as batatas. Ou o Tomate. Tanto faz.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Conto Fantástico

por Flamarion Daia Júnior

Dona Júlia morava em uma cidade pequena, numa casa isolada, rodeada por altas árvores, que sendo muitas e maiores que a casa muitas vezes confundiam a visão dos pedestres, fazendo com que a casa passasse desapercebida, mesmo de dia. De noite, ninguém poderia perceber a diferença entre a casa de Dona Júlia e uma floresta densa, e se alguém soubesse disso sentiria apenas por tal fato um pouco de medo, seja pela dificuldade em perceber uma casa, seja porque tal casa, em si mesma sombria e assustadora, ficava ainda mais sombria e assustadora de noite. É sabido que a noite, com sua escuridão, tem o poder de aumentar a suscetibilidade do homem ao medo, por um lado, e de tornar mais assustador o que em si já é sinistro, do outro, de sorte que poucas pessoas no mundo teriam coragem de passar a noite na casa de Dona Júlia, embora ela mesma pouco tivesse de sombria e assustadora, em sua aparência. Ela era uma mulher de pouco mais de 40 anos, muito magra, muito branca, e com olhos azuis que davam muito mais a impressão de serenidade que de beleza, embora não deixassem de serem belos. Sendo solteira, deveria morar com a família, mas ela vivia só. Diziam que seu dinheiro vinha de duas fontes: seus contos, que publicava em jornais da cidade grande, e uma herança, que aplicada a juros lhe fornecia uma renda mensal. Nada que desse para viver com muito luxo, mas ela parecia muito satisfeita em ser independente e solitária.

Teresinha era quase o contrário de Dona Júlia. Tinha menos de 15 anos e vivia com a família. Era uma mocinha até bonita, mas suas formas ainda eram infantis demais para ser atraente. Sua família era pobre, por isso ela teve que interromper seus estudos para trabalhar na casa dos outros, e Dona Júlia era sua primeira patroa. Enquanto dona Júlia era uma mulher serena e fria, Teresinha era uma adolescente nervosa e agitada. Trabalhar naquela casa a fez ainda mais nervosa. As pessoas que a conheciam notavam que Teresinha passara a ter tremores nas mãos e a olhar em volta, meio assustada, sem nenhum motivo aparente. Teresinha teria gostado de deixar Dona Júlia e trabalhar em outro lugar, não por Dona Júlia em si, que nunca a maltratava, e sim pela casa, que lhe metia medo, mas não havia muitas alternativas para uma criadinha sem experiência nem recomendações. Além do mais, para seus pais era melhor ela trabalhar na casa de Dona Júlia, que vivia só, morava ali perto e não recebia v isitas, do que em outro lugar, onde sua filha poderia ficar indefesa diante de algum cínico mulherengo.

Na casa de Dona Júlia, longe das vistas de seus próximos, o comportamento de Teresinha era ainda mais esquisito. Muitas vezes, ao limpar alguma coisa em algum quarto sombrio, empoeirado e cheio de velhas bugigangas daquela casa silenciosa, Teresinha sentia medo. Sem motivo aparente, começava a tremer e a suar frio, tornando-se por algum tempo ainda mais pálida que Dona Júlia. Imaginava por algum motivo algum monstro, diabo ou fantasma houvesse a espreita, em algum canto, um ser cuja aparência medonha por si só fosse bastante para atormentá-la pela eternidade, sem mais necessidade de qualquer outra sevícia adicional. Era o Medo, e medo em estado bruto, que a nervosa Teresinha não entendia de onde vinha, nem porque. Quando isso acontecia a pobre parava tudo o que estava fazendo e se recolhia, paralisada, em algum canto. Isso durava poucos minutos até que a chegada providencial de Dona Júlia, que parecia adivinhar a ocorrência desses acessos repentinos de medo, a tirava de tal t ranse.

Dona Júlia aparecia calma e serena. Sua presença tranqüilizava Teresinha, e seu toque lhe devolvia a consciência. Dona Júlia alisava a cabeça de Teresinha, com calma, depois limpava suas lágrimas (porque Teresinha chegava a chorar de medo) com um lenço. Depois, lhe dava um rápido beijo na testa. Nunca deixava de olhar com ternura para Teresinha nessas ocasiões. Seu olhar parecia dizer a Teresinha "Eu sei, eu também já passei por isso". Logo Teresinha estava na cozinha, bebendo um suave chá, de gosto estranho mas mesmo assim agradável, tranqüilizada e também envergonhada de ter tido tanto medo sem motivo aparente, como uma menina de colo... Pouco depois Teresinha ficava boa o bastante para trabalhar, e procurava fazer seu serviço doméstico o melhor possível, um pouco por gratidão, um pouco para esquecer, concentrada em seu trabalho, suas angustias inexplicáveis. Era muito grata a Dona Júlia, e sentia que gostava muito dela, embora quase nunca conversassem, já que Dona Júlia er a uma mulher silenciosa e Teresinha não ousava aborrecê-la com suas bobagens de adolescente caipira. Logo seria hora de voltar para a casa de seus pais, e para Teresinha esse era um momento de profundo alívio - Ainda bem que não tinha que passar a noite lá!

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Dona Júlia escrevia prosa de ficção cujo tema era, principalmente, os terrores que atormentavam o homem. Histórias de fantasmas e monstros terríveis, de loucos criminosos obcecados em matar dolorosamente e grotescamente suas vítimas. De diabos que subiam do inferno a fim de espalhar a confusão e a angustia na terra dos vivos. De paixões profundas mas também funestas, que arrastavam homens e mulheres para o pecado, do pecado para o crime e do crime para o inevitável castigo e para a destruição. Historias que também falavam da beleza triste e serena de seres mortos, pessoas muito queridas cuja ausência irremediável provocavam dores incuráveis, por serem exclusivamente espirituais. História que refletiam sobre o triste fatalismo da morte, que nunca poderia ser agradável, apenas serena, na melhor das hipóteses, e do cruel destino de pobres desgraçados que nem mesmo no ato de morrer e nem mesmo depois encontravam paz para suas almas. É importante que se diga que na ficção de Dona Júlia os terrores nasciam de dentro do homem atormentado, mesmo quando assumiam uma forma exterior. As criaturas das trevas não fariam mal nenhum ao protagonista se este não tivesse, em sua psique, o que as atraiam, e seus personagens nunca deixavam de colaborar, de um jeito ou outro, com seu próprio sofrimento e no final com sua própria morte.

Dona Júlia não se via como uma simples escritora de contos fantásticos. Ela se considerava uma investigadora das trevas que rodeavam o homem e que poderiam, como muitas vezes realmente acontecia, embora as pessoas não o percebessem a não ser em raros casos e intuitivamente, envolver e finalmente destruir o homem se ele fosse leviano e perverso. Seus contos, portanto, não eram realmente ficção, pelo menos não totalmente, mas também registros e hipóteses profundamente meditadas sobre a vida do homem na terra, uma vida de riscos terríveis e ocultos, pela própria semente do mal, que estava dentro do homem e, da alma humana, atraia o mal. Os homens erravam em parte, portanto, ao atribuir aos seres monstruosos a culpa por sua monstruosidade, embora tais seres efetivamente existissem, porque a culpa primária estava dentro do próprio homem. Era o que dizia Deus, desde o principio: Que a terra é maldita e maldita por culpa do homem (Gênesis 3:17).

Dona Júlia descobrira sua vocação na adolescência, com a idade de Teresinha, mas durante muito tempo não teve coragem de escrever. Mas sempre fora atormentada por monstros, por visões pavorosas, por terríveis intuições, que a impediram de levar uma vida normal, e se tornou escritora de contos fantásticos por nunca ter sido capaz de pensar a sério em outro assunto.

Ela sabia que não haveria alternativa também para Teresinha.

A atmosfera assustadora da casa certamente impressionaria a qualquer pessoa, mesmo que não houvesse realmente seres monstruosos e imateriais rodeando Dona Júlia. Fantasmas vinham contar-lhe seus crimes e descreviam, entre lamentos, sua punição; demônios a ameaçavam e criaturas vampíricas procuravam, através do ar, sugar-lhe sua vontade, sua inteligência, seus sentimentos... Às vezes Dona Júlia os via. Sempre sentia sua presença quando eles estavam perto, o que era quase sempre. Ela era uma mulher instruída em assuntos ocultos e muita firmeza de vontade, de sorte que as criaturas do mal, os fantasmas, demônios, vampiros e outros monstros, pouco ou nada podiam contra ela. Mas com Teresinha, moça muito jovem e ainda ignorante de quase todos os assuntos da vida, e que tinha inata sensibilidade tanto para as criaturas imateriais, sensibilidade esta que aumentava em lugares sombrios e distantes das pessoas, era diferente, e não era outra a origem de seus surtos irracionais de medo, irracionais certamente, mas não infundados, como a mocinha ingênua imaginava.

Às vezes, ao terminar algum conto ou estudando algum de seus livros, Dona Júlia pensava no futuro de Teresinha. Depois de adquirir alguma prática na casa de Dona Júlia, ela receberia uma proposta de trabalho em outro lugar, e aceitaria, crendo com isso resolver suas angustias. Inutilmente se afastaria da casa de Dona Júlia, pois o fato é que tendo convivido e percebido as criaturas do mal os dons ainda não plenamente desenvolvidos mas mesmo assim profundos de Teresinha a levariam a ter repetidos surtos de medo, ansiedade e depressão, uma vez que a breve experiência na casa de Dona Júlia bastara para sua sensibilidade se exacerbar por toda a vida. Dona Júlia não regatearia referências nem seria sovina ao acertar as contas com Teresinha, uma vez que sabia que ela voltaria a procurá-la, única pessoa capaz de entendê-la e aliviá-la.
Depois, os pais de Teresinha morreriam, e ela passaria a viver definitivamente com Dona Júlia, que seria como uma mãe para ela, cuidando inclusive da s lacunas em sua instrução. Depois, a própria Dona Júlia morreria, e Teresinha continuaria sua obra, escrevendo contos fantásticos, estudando ciências desconhecidas para a maioria da humanidade, assinando livros com seu nome completo, Teresa Mendes, e vivendo uma vida solitária até ter a sorte (porque isso estava longe de ser uma garantia) de encontrar uma pessoa com a mesma capacidade de intuir a presença do mal e escrever sobre ele, fazendo da descrição e da análise uma maneira de controlá-lo, semelhante ao domador de feras selvagens cujo medo dos animais diminui com a familiaridade e com o controle.

domingo, fevereiro 13, 2005


por Fabio Ulanin

Perguntaram-me, outro dia, se esta minha reconversão ao catolicismo, depois de vinte e tantos anos, era diretamente proporcional ao meu distanciamento da esquerda política. Não soube o que responder de imediato, pois qualquer tentativa de elucidar ao inquiridor as minhas posições teria como resposta duas obviedades: uma, no caso de afirmar o distanciamento político como resultante da aproximação religiosa, seria voltada à inverdade histórica vendida em todas as escolas pelos professores ateus e agnósticos para os quais crer em Deus e em Jesus Cristo significa uma completa impossibilidade de distanciamento crítico frente à realidade; em outras palavras, eu escutaria um “mas é claro, já que a Igreja é reacionária em suas posições”. No segundo caso – meu afastamento da esquerda nada teve a ver com a aproximação da Igreja – a resposta seria facilmente moldada em outro sentido: abraçaria uma fé falsa, na medida em que a própria Igreja reconhecia as propostas da esquerda como úteis e necessárias para a sociedade. Não soube o que responder, pois, menos por não saber que decisões eu tomei do que da forma como eu poderia responder tal questão, sem cair nas armadilhas embutidas na pergunta.

Ainda existe ranço nas pessoas, quando se trata de religião. Aliás, corrijo-me: existe um certo tipo de comportamento rançoso quando se trata da Igreja Católica. Quando o assunto é a doutrina protestante – inclusive os delírios neo-pentecostais – a coisa muda de figura. Não sou eu quem o digo: estou devidamente abalizado por uma série de predecessores (e esta é uma palavra imprópria, na medida em que não pretendo continuá-los) de peso e de caráter intelectual muito superior ao meu: Otto Maria Carpeaux, em um ensaio a respeito de Max Weber, é muito claro ao perceber as relações íntimas entre o marxismo e as ideologias burguesas protestantes; Gustavo Corção disse o mesmo em um bom número de artigos; Maritain, no seu Humanismo Integral cria relações íntimas entre esta forma religiosa e o espírito revolucionário. Creio que li, em algum lugar, algo de Alceu Amoroso Lima a este respeito, mas não dou certeza. O que me parece claro é que é muito mais fácil para uma pessoa de esquerda apoiar e defender o protestantismo e suas diversas formas do que olhar, simplesmente e com o coração aberto, para o catolicismo e sua proposta libertadora. Posso escutar, ali no fundo da platéia, umas vozes que se erguem, dizendo que os autores que citei são, todos, reacionários – portanto de direita. É o modo fácil da rotulação – e, pior: é uma mentira.

Corção era, sim, posicionado à direita e, inclusive, apoiou o golpe de 1964. O mesmo, no entanto, não se pode dizer dos outros três: Maritain fez parte da Ação Católica que, cá entre nós, de direita tinha muito pouco (e de marxista menos ainda); Carpeaux é, ainda hoje, o queridinho das academias graças não só ao brilhantismo dos seus ensaios e das sínteses históricas sobre literatura que escreveu, mas principalmente por se colocar um tanto mais à esquerda que muitos contemporâneos; e Amoroso Lima era um homem que se dizia um liberal-adjetivo e não um liberal-substantivo – na media em que ser “substantivamente liberal é não fazer distinção entre a verdade e o erro, entre religião verdadeira e falsa, entre sistemas filosóficos. É nivelar todos os valores, fora o da liberdade” (Revolução, reação ou Reforma? Petrópolis: Vozes, 1999).

A minha resposta poderia, talvez, ser simples: deixei de ser esquerda muito antes de voltar a ser católico. Meu afastamento da ortodoxia marxista se deu aos poucos e lentamente. Para tal precisei não de leituras austeras, não de uma análise filosófica profunda: precisei, apenas, parar e olhar com atenção aquilo que me cercava. Qualquer um que pare e olhe atentamente o cerne das propostas da esquerda imediatamente deixa de acreditar na sua viabilidade e na sua capacidade de igualar os homens em seus direitos. Qualquer um que tente – apenas tente – se afastar dos dogmas do PT, por exemplo, e reflita com um mínimo de desprendimento em sua viabilidade, terá a resposta atirada à cara, sem dó nem piedade: tudo isso que você acreditou é falso. Comparo o meu afastamento da esquerda e de suas propostas a um parto – um parto de dez anos, lento e muitas vezes doloroso.

Tampouco precisei, para voltar ao catolicismo, de grandes investigações filosóficas ou teológicas. Precisei simplesmente, depois de perceber a mentira na qual estive mergulhado por tanto tempo, ler uma ou duas páginas de Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino. Não há no mundo uma pessoa inteligente que os leia e não sinta o impulso imediato da conversão: são palavras altas demais; são gritos da verdade; são ensurdecedoras as suas vozes – e imenso o amor que delas desprende, atingindo-nos em nossa velha ferida, jamais cicatrizada: teu coração (dizem as palavras dos Santos Doutores) é humano e vazio e, por causa disso, busca um fim último – o único fim possível e plausível; nada no mundo poderá preenchê-lo: apenas a Verdade. E reconhecê-la dependerá só de ti.

Não sou, pois, nem esquerda nem direita, muito pelo contrário. Há grupos, na Igreja, que se posicionam politicamente – e posso não concordar com eles, seja a pastoral que defende os sem-terra seja a TFP. Aliás, discordo das duas. Discordo de ambas, mas creio em uma única Verdade: acima da política e suas disputas comezinhas, pretendo apenas encontrar Aquele que nos salvará.

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quarta-feira, fevereiro 09, 2005


por Rodrigo R. Pedroso


Um dos lugares-comuns da cultura de nossa época é o sentido extremamente negativo emprestado à palavra “repressão” e a tudo o que pode ela significar. A repressão é tida como o resumo e a fonte dos males que afligem o homem, uma obscenidade a que não se deve fazer referência sem o devido anátema. Basta que uma instituição seja apontada como “repressora”, para estar inquinada de vício insanável. Em meus tempos de criança, lembro-me de que fazia muito sucesso um conjunto de portorriquenhos, que se requebrava cantando: “No se reprima! No se reprima!” Dentro dessa perspectiva, urge eliminar qualquer forma de repressão, e subverter as instituições e os valores herdados das gerações passadas, para instaurar uma sociedade absolutamente não repressiva.

O problema é que semelhante preconceito reflete uma incompreensão radical do significado da cultura. Efetivamente, toda a cultura é edificada sobre a repressão. Sem esta, não há civilização, não há linguagem, não há vida social, não há educação. Pretender eliminar a repressão em todas as suas formas, é buscar a desintegração da vida em sociedade, e rebaixar o estatuto humano à condição dos irracionais.

Mais que todas as outras, é condenada a repressão sexual. Todavia, imaginem vocês as consequências reais de uma sexualidade absolutamente liberada, sem qualquer espécie de repressão. Em primeiro lugar, não haveria mais família, que é a base da vida social. Que freio encontrariam os egoísmos humanos? Eis o homem embrutecido, escravizado pelos próprios instintos. E nas últimas décadas temos assistido as pavorosas consequências de uma sexualidade que não é reprimida pela razão: os casamentos fracassados, as crianças que crescem sem pai, as adolescentes gestantes, a violência e a insatisfação generalizada. E há ainda os hipócritas que asseveram que o que faz infelicidade é a repressão sexual...

A premissa implícita na radical condenação da repressão é a de que nada há no homem que deva ser reprimido. Ocorre que este pressuposto é falso: tanto no interior do indivíduo, como na sociedade, estão presentes tendências dissolventes e desintegradoras, que precisam ser reprimidas. Liberar essas tendências desordenadas, é abrir as portas para o fracasso, tanto na vida individual, como na social. Um homem concentrado, por exemplo, é um homem reprimido; para manter a atenção em algo, é necessário reprimir as tendências interiores que conduzem à dispersão. De modo que toda a arte, ou pelo menos a arte de boa qualidade, é produto da repressão: ninguém sequer aprende a tocar piano ou violão se não for capaz de reprimir-se.

A repressão é própria do homem, em relação aos outros animais, porque apenas o homem, animal dotado de razão e de vontade livre, é capaz de reprimir seus próprios desejos e instintos em função de um ideal maior. Não é belo alguém ser senhor de si próprio? Ora, o autodomínio é impossível sem repressão. Por isso, todo o palavrório que se difunde contra a repressão visa, intencionalmente ou não, à desumanização do homem, e à sua escravização pelas paixões mais baixas.

A absoluta ausência de repressão é o império da violência, do medo e da injustiça. Não é a repressão que produz a violência, é a ausência dela. Não reprimir a bandidagem, é penalizar injustificadamente os cidadãos honestos e trabalhadores. Não reprimir a baderna e a desordem, é prejudicar o progresso da sociedade. Não reprimir a violência e a injustiça, equivale a premiá-las, ao mesmo tempo em que se pune a virtude. Em um ambiente assim, eu digo, corrigindo Ruy Barbosa, que não dá vergonha de ser honesto, dá medo.

A paz, assim, é um fruto excelente da repressão. A paz foi definida por Santo Agostinho como sendo “a tranquilidade na ordem” – ora, que ordem manter-se-á tranquila, sem a repressão das forças centrífugas da desordem?

A idéia, portanto, de que a repressão é sempre uma coisa má e detestável, não pode ser sinal de juventude, nem tampouco de vitalidade. É antes, o traço característico de uma sociedade que caminha para o fim, de uma civilização senil e caquética, incapaz de identificar as forças que a desagregam.

quinta-feira, fevereiro 03, 2005


por Tiago Mattoso Sacilotto


“A virtude não tem padrão: conforme cada um a honre ou a despreze, dela terá mais ou menos”. Platão

“A ânsia de poder é uma tendência enraizada fundo demais na natureza humana para que possamos arrancar com facilidade”. Werner Jaeger. Paidéia.



A indiferença moral da juventude ao encarar o problema do poder é a cerne do diálogo entre Pólo e Sócrates. O jovem sente-se incomodado com o fecho da conversa com Górgias, professor niilista da antiga sofistica, na qual Sócrates demonstrou-lhe a incoerência ao definir o objeto da sua profissão. A opinião a cerca do limite da retórica não lhe parece clara o suficiente para que admita a verdade do argumento socrático.

Segundo Eric Voegelin, Pólo não percebe a diferença entre honestidade existencial e discussão intelectual e não compreende que é a causa do constrangimento do seu mestre. Pólo quer brincar pelas definições e considera-se confortável para ser igual ao mestre. Na medida em que Sócrates entende a desonestidade de Pólo no trato do dialogo – o jovem incita contestações com o fim de se vencer o debate sem ter razão - começa a perguntá-lo se a geração jovem tem algo a corrigir dos mais velhos, pede que não se prolongue demasiadamente uma definição de modo que a conversa não termine.

Um adendo evidente. As experiências humanas no passado correspondem às presentes, no processo pelo qual as situações aproximam ao sentido comum ao invés de se distanciarem com o tempo. O fato é que a situação de desonestidade moral ao proceder uma discussão é constante no tempo, existiu nos tempos gregos, existe atualmente no Brasil. Nos discursos ou debates, os indivíduos desejam vencer uma contenda pelo grito nas formas variadas de ofensa pessoal ou contestação sem medida. Se não houver uma compreensão do lado desonesto, a possibilidade do diálogo não existe, a melhor maneira parece a se afastar.

Pólo parece entender a necessidade do diálogo aceitando a condição socrática. Muda-se a forma do discurso, sendo o questionador Pólo. Já de vista pergunta a que arte seria a retórica, Sócrates de imediato nega a arte designando o termo rotina; retórico é o indivíduo que manipula as palavras a fim de provocar “prazer e satisfação”. Ainda representa um “simulacro da política” , a bajulação política a que Sócrates se refere visa ao prazer como isca a ignorância.

Como bajulação desnecessária, ainda no esforço de encontrar esse adendo no tempo mais chamado como liame existencial, temos presente essa mania brasileira em querer agradar; seja em qualquer ponto antropológico, ou de realidade incerta, a mania nacional da lisonja ultrapassou o limite entre a verdade e o erro. Manifestações de um vazio intelectual e moral são tratadas com a concessão; tolera-se ao erro alheio no misto de oportunismo e futilidade manifesta. O brasileiro não sabe mais a quem se agradar, termina por agradar todo mundo.

A sina continua quando Sócrates define ainda mais a retórica. Descreve que a rotina refere-se ao descuido com os meios e os fins, já que toda arte tende a um fim. È o momento em que Sócrates compara dialeticamente as atividades humanas com a retórica; postula que a justiça contrapõe o exercício de Górgias. Polo parece não acreditar, fingindo-se cético quanto à verdade socrática. Sócrates sutilmente pergunta-lhe se já não está se esquecendo nessa idade.

O tema de justiça inadequada ao exercício retórico enseja a dúvida em Polo: se o fim da retórica não é a justiça, como ela é digna de tanto apreço e admiração para quem lhe detém o poder? O diálogo com o jovem enfrenta a situação mais chocante, Polo ambiciosa abertamente a tirania; elogia àqueles que dispõem de poder para conquistar multidões, confiscar bens alheios e expulsar da cidade. As implicações com o tema do poder e a inveja de Polo aos tiranos é assunto para o próximo texto do Oito Colunas.

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Os que quiserem ler os dois primeiros artigos desta série, enviem um e-mail para aco@atarde.com.br ou tentem acessar o antigo blog .