quinta-feira, abril 28, 2005



por Fabio Ulanin


Discute-se muito as novas diretrizes que deveriam reger nossa literatura. Discussão que tem origens na França da década de 70, pela obra de supostos pensadores como Lyotard e Baudrillard, que trouxeram à tona a chamada produção “pós-moderna”. Da França, espalhou-se pelo mundo a nova façanha intelectual, criando um rótulo cômodo a acomodado para os nossos intelectuais: no “pós-moderno” tudo cabe, tudo é valorado, tudo é possível, como um gigantesco saco de gatos do qual extraímos estéticas e teorias e no qual encontramos justificativa para qualquer absurdo non-sense que se passa por arte. Claro, não podemos nos esquecer que este movimento apresenta uma faceta que não se ousa revelar: esta discussão filosófica é um modismo como foi o existencialismo de Sartre, como foi o Construtivismo, como foi o próprio marxismo e, enquanto movimento modal, serve para, pelo menos, uma coisa: vender livros e mais livros, em toda e qualquer área de atuação humana - da física quântica à poesia, da sociologia à informática, passando pela lingüística, pelo direito, pela história e pela defesa politicamente correta das chamadas minorias - que existem, mas calma! não é pelo fato de que um escritor é negro, gay ou mulher que ele se torna melhor que qualquer outro. Machado de Assis era mulato, epiléptico, feio e grande escritor, como também o era Cruz e Souza, que perdeu todos os seus filhos e viu a esposa mergulhar tragicamente na loucura; porém a crítica politicamente correta, seguindo o policiamento ideológico do Movimento Negro, afirma que estes dois escritores “negavam” suas origens pelo simples fato de escreverem como europeus brancos! Valora-se assim o escritor pelo seu adjetivo, não pelo substantivo, gerando desta forma uma inversão de valores: algo é bom pelas suas qualidades, e não pelo que de fato é.

Deixemos o aprofundamento desta discussão para outra oportunidade. O que é apresentado brevemente aqui já se mostra suficiente para tentar, em linhas gerais, analisar o caso de um poeta brasileiro de alto valor: Gerardo Mello Mourão. Nascido em Ipueiras, Ceará, em 1917, este poeta engajou-se no Integralismo de Plínio Salgado, tido como a versão tupiniquim do fascismo italiano; foi professor, jornalista, deputado federal, viveu na Europa, passou pelos Estados Unidos da América, viajou pela China comunista em pleno regime militar brasileiro e apresenta um posicionamento político e ideológico que vai radicalmente contra todo o status intelectual de nossa intelligenzia política e universitária pautadas no esquema desgastado das esquerdas. Enfim, é um homem rotulado de “direitista” e “reacionário”. É o que basta para ser alvo da maldição que emana dos sarcófagos acadêmicos “pós-modernos”.

A pergunta que cabe é: basta um posicionamento político para fazer um bom escritor? Segundo nossos intelectuais, sim, afinal arte deve(ria) seguir modelos “progressistas” (seja lá o que significa isto) e não pautar-se em valores ultrapassados há muito. Desta maneira, Gerardo Mello Mourão não passa(ria) de um versejador de quinta categoria, não merecendo o menor destaque pelo fato de ter recebido, no ano de 1999, um dos principais prêmios literários brasileiros: o Jabuti, pelo seu poema épico Invenção do Mar.

Mas a verdade, aquela Verdade parte da tríade grega (o Bom, o Belo e o Verdadeiro), é outra: Mello Mourão é poeta, e grande poeta, que resgata os valores clássicos da literatura, na busca incessante de criar poemas que revelem mais do que um modismo: a Poesia na mais alta acepção da palavra, no recorte sensível de uma realidade da qual fazemos parte e não temos olhos para ver. Em outras palavras, o resgate da poíesis, do fazer poético, em confronto imediato com a techné, a técnica que reproduz este fazer. Basta um pequeno trecho do poema “O que as sereias diziam a Ulisses na noite do mar” (in Cânon e Fuga, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 9) para notarmos que o alto índice de erotismo existente no poema foge de toda e qualquer pretensão pós-qualquer-coisa da gratuidade sexual encontrada mídia afora:

“Ninguém jamais ouviu canto igual
ao canto que te canto
escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
só ouvem minha voz - a noite e o mar e tu
marinheiro do mar de rosas verdes:

virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim - e ao ritmo
de teu corpo entre a cintura e as ancas
mais o lençol de aromas de meu corpo
em monte de pétalas desfeito:

[...]

Todas as deusas se entregam
ao amante que um dia possuiu uma deusa
e então todas as fêmeas dos homens
Helenas, Briseidas e a Penélope tua
hão de implorar às Musas - e as Musas e Eros e Afrodite
a volúpia de uma noite contigo.”

O que Mello Mourão nos revela é mais do que o puro erotismo: é a leitura musical do canto da sereia, revisto da Odisséia, explorado não só como palavra, mas como música pura (o próprio poeta nos afirma que escreve sobre a frase musical “Was sagen die Sirenen als Odysseus vorbei segelte”, de Ivar Frounberg). Intertextualidade, diriam os mais afoitos representantes de nossa atual crítica. Poesia pura e verdadeira, diz este obscuro escrivinhador. Se o valor deste poema estivesse apenas no fator intertextual nele encontrado, então poderíamos apenas cogitar uma criatividade mediana. Mas o poema nos propõe um valor além deste: é uma leitura clara do próprio ritmo do verso grego, somado à música (como era a poesia em suas origens) e à oralidade: é um poema para ser cantado, não apenas lido. A recorrência das palavras, através do recurso da repetição (“as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar/ ouvem minha voz - a noite e o mar e tu”), nos oferece o ritmo adequado do próprio movimento do mar e do mesmo movimento das “ancas”.

Ao selecionar a Sereia como voz do poema, Mello Mourão universaliza a sua fala. Nestes tempos de valorização individual, o resgate do universal é um choque que não é admitido pela crítica. O rótulo de “antiquado” é facilmente utilizado pela intelligenzia, na vã tentativa de desmerecer toda uma cultura, fonte da nossa: a grega, com a visão aristotélica da literatura, tão esquecida e relegada ao segundo plano como algo “ultrapassado” e sem aplicabilidade. Este, talvez, o grande problema: esquecemos as nossas origens e passamos a valorizar apenas o que é “novo”, moldado pelo modismo fácil e digestivo que se volta à mera literatura de consumo. Mas o poeta vai mais além, resgatando o terceto como forma poética apropriada, levando o leitor a um outro universo: o do início da renascença, como no poema IX do Canto III de sua Invenção do Mar (Rio de Janeiro: Record, 1998, p.117):

“E da nau capitânia de Pedrálvares
vamos às armas, às capitanias
hereditárias com seus donatários.

A terra se amadura em sangues vivos
de visigodos, celtas, celtiberos
portugueses das cepas henriquinas.

E tupis e tapuias e aimorés,
timbiras, tabajaras, potiguaras,
guaicurus, guaranis e goitacazes.

E os negros arrastados dos Benins,
das Angolas, Guinés e Moçambiques
temperam com seu riso e sua dor

a beleza do rosto das mulheres
o braço varonil de seus varões
a alma auroral da raça da esperança

os negros, Abdias - Abdias Nascimento, os negros!”

Não por acaso o poeta escolhe o terceto renascentista (com terza rima aproximada): este foi o período de revaloração da épica (com Dante e sua Divina Comédia; com Camões e Os Lusíadas - também resgatado em outros cantos do poema, enquanto referência formal -, com a Jerusalém Libertada, de Tasso, dentre outros) nos moldes clássicos. Assim, soma-se a referência puramente formal com outra, conteudística: a construção do Brasil, fruto das navegações portuguesas, misto de uma série de culturas diferentes mas concordantes. “Visigodos, celtas, celtiberos” são “portugueses” (basta lembrarmos dos textos de Rainer Reihnhardt que tratam das origens do povo luso para comprovarmos o que nos traz o poema) que, somados aos índios da nova terra (“tupis e tapuias e aimorés,/timbiras, tabajaras, potiguaras,/guaicurus, guaranis e goitacazes”) e aos negros vindos das nações africanas (notemos o uso do plural em “Angolas, Guinés, Moçambiques”) irão construir a “alma auroral da raça da esperança” - o brasileiro. Esta miscigenação de raças e culturas gera um Renascimento - o da esperança, o do verdadeiro valor de uma nação, o da Raça como fonte única para a construção do novo mundo, revestido de todo o misticismo profético sebastianista português que vai encontrar continuidade no nordeste brasileiro:

“Sebastião! Sebastião! - depois do mar
Sebastião! Sebastião! - no mato adentro
a noite e o dia levam ao destino

e este destino é vê-lo de repente
com seu rosto de Arcanjo e sua espada
a armadura de prata ao sol do trópico.

Na menina dos olhos sua imagem
no coração - presente o grande ausente
seu nome na garganta e flor da boca.

[...]

Raça do mar, gerados pelas ondas
com as raças da terra e de outras terras
iam gerando sua nova raça.

Sebastião! em todas as partidas
Sebastião! Em todas as chegadas
onde o sertão for mar e o mar sertão.”
(Invenção do mar, Canto III, poema VIII, pp. 115-116)

A nova raça é formada, assim, para o cumprimento da Profecia, inevitável como a transformação, também profética segundo Padre Cícero, do mar em sertão e do sertão em mar. Podemos afirmar que este é o poema épico sobre a formação do Brasil no cumprimento do destino de Portugal: a construção da Ilha Brasil mítica, paraíso na terra, de onde surgirá a nova humanidade. Como épico e resgate dos valores clássicos, não poderia de deixar de explorar a musicalidade do verso - mais uma vez o canto que se abre e se valoriza sobre a palavra poética.

Exatamente por estes dois fatores: o formal clássico e o conteudístico nacionalista, é que a atual crítica rejeita Gerardo Mello Mourão. É mais fácil dar louvores à mediocridade na arte contemporânea - que não coloca em risco nossos juízos de valores acomodados na enfadonha repetição de lugares-comuns na forma de rótulos - do que ter de fazer o esforço intelectivo de encontrar a Beleza, a Bondade e a Verdade, sempre mais exigentes. Além disso, Mello Mourão não compartilha com a “nova onda” da crítica dominada pelas esquerdas, segundo a qual todo e qualquer nacionalismo cheira a comportamento reacionário e manutenção de status aristocráticos. As esquerdas ainda seguem sua cartilha para cumprir seu objetivo: a destruição dos verdadeiros valores que formam a humanidade. A tentativa da intelligenzia em destruir um poeta como Mello Mourão através de rótulos fáceis e frágeis é compreensível, pois compreendê-lo significaria ter de assumir um posicionamento frente à realidade despido de dogmas e, desta forma, partir em busca das verdades histórica, estética e filosófica. O que, digamos, não é nada fácil para as mentalidades “pós-modernas” obscurecidas pela retórica politicamente correta.

segunda-feira, abril 25, 2005


por Maurício Amaral

Das muitas razões pelas quais eu detesto o pagode talvez uma pudesse ter sido superada. Um grupo de pagode geralmente possui apenas um, no máximo dois cantores que se alternam. Apesar disto, o conjunto conta sempre com mais seis ou oito elementos ridículos que permanecem no fundo do palco fazendo coreografias que consistem, basicamente, em dar dois passos para um lado, uma meia-volta e dois passos para o outro. Costumam usar roupinhas iguais, às vezes fazem que tocam um pandeiro ou uma maraca, e mantêm sempre um sorriso típico de quem ganha dinheiro no mole.

Outro dia fiquei imaginando que este abuso poderia ser transformado em algo de útil para a sociedade. Pensei, pensei e resolvi procurar um amigo que é produtor de um grupo pagodeiro. Expliquei para ele que o pai de outro amigo meu estava desempregado e pedi para ele um lugar no conjunto, exatamente entre aqueles que não se esforçam muito, já que, afinal, o sujeito já tem sessenta e oito anos.

No começo ele não me levou a sério, mas caprichei na argumentação. Mostrei para ele que o velho não teria muita dificuldade em executar as coreografias e, nesta parte, ele até concordou comigo. Em seguida avancei de maneira mais arriscada. Disse que a inclusão de um velhinho poderia atrair uma fatia de público ainda pouco explorada: as velhinhas solteiras, viúvas... e até as casadas insatisfeitas. Aí a conversa começou a degringolar: meu amigo achou um absurdo pensar nas velhinhas babando por um pagodeiro, pensou em sua própria mãe, e até na avó. Ficou bravo comigo e quase era o fim de uma amizade, mas, percebendo o problema, mudei rapidamente de estratégia. Divaguei sobre o assunto, apelei para o gesto social... disse que ele poderia até ir ao governo pedir um incentivo, qualquer coisa como redução de impostos, afinal de contas seria uma iniciativa pioneira na área social, etc. Ele pareceu gostar desta parte, até pensou em voz alta que poderíamos inventar que o velho era abandonado, e eu completei que se a moda pegasse, o governo economizaria com o esvaziamento dos asilos e a novidade poderia interessar à mídia, programas tipo Fantástico, Faustão, Gugu, etc., e até as pessoas que não gostam de pagode, como eu, poderiam passar a se interessar por questões humanitárias. Foi quando estraguei tudo. Não sei por que, mas esta última frase fez com que ele duvidasse de mim. Não consegui mais convencê-lo de que não era uma gozação e, assim, um grande projeto social se perdeu. No final, o velho continua desempregado e eu odiando mais e mais o pagode.

quinta-feira, abril 21, 2005


por Flamarion Daia Júnior


Não há dor maior do que perder um ente querido. E mais dolorosa será a perda se for definitiva - com a morte de quem amamos. E se este morre em terríveis agonias padecemos duplamente, por um lado por nós mesmos, por outro pelo que suportar mil dores desesperadas na transformação assustadora, embora em si mesma vulgar e muito natural, da carne viva em carne inanimada, através do bem conhecido fenômeno da natureza que chamamos morte. Terrível morte, quase tão ruim para quem a testemunha quanto para quem a sofre, pois tira do sobrevivente uma pessoa amada e em troca dá a certeza de que o homem é um pobre animal frágil e desamparado em um mundo bruto e indiferente às nossas esperanças tanto quanto às nossas angustias. A dor de perder um ente querido para a morte, e de forma dolorosa, é ainda pior que a dor de ter sido abandonado. Afinal o abandonado pode sonhar, mesmo sem muitas esperanças, com a volta daquele que o deixou. Ou pode acreditar que o abandono, no fundo, é melhor para todos os envolvidos, o que não acontece com quem testemunha a morte dolorosa de uma pessoa querida.

Estes pensamentos, e a dor associada a estes pensamentos, atormentavam Lúcia, que enterrava Agnes. A morte passara a fazer parte da vida delas muito cedo, e Agnes se juntaria ao pai e aos irmãos, deixando Lúcia só naquela aldeia. O Padre que cuidava daquele cemitério a tinha ajudado a cavar, mas Lúcia devia enterrar sozinha a irmã. Isso não exigia muito esforço físico, uma vez que a terra estava ao lado da cova aberta. Mas doía no coração de Lúcia cada pá de terra que jogava sobre o cadáver da irmã. Uma dor angustiada e desesperada, onde se juntavam as lembranças da doença dolorosa da irmã, o medo da solidão a que estava condenada e a certeza de levar uma vida vazia e sem alegria, sem ternura e sem prazer, até que a própria Lúcia fosse depositada em uma cova, como Agnes tinha sido. Lúcia não teria nem mesmo uma companhia ao seu lado, ninguém que pudesse lhe amparar e se esforçar para que sua morte fosse a menos sofrida possível, como ela tinha feito por Agnes. Estava enterrando sua ultima parente.

O enterro não foi rápido. Ela teve que parar várias vezes para enxugar suas lágrimas. E, além disso, ela estava fraca. Passara os últimos dias cuidando da irmã, negligenciando sua própria alimentação e deixando de dormir, inutilmente se enfraquecendo na luta vã para tentar salvá-la.

Seu choro era quieto, sentido. Não gemia, suspirava, até mesmo por causa de sua fraqueza. Tinha dificuldades para respirar, dificuldades que aumentavam cada vez mais. Talvez estivesse com a mesma doença que Agnes...

Não, ela não queria pensar nisso. Não queria morrer como a irmã, cuspido sangue e depois cuspindo cada pedaço de seus órgãos internos, e a cada tosse, junto com o sangue, deixando escapar dolorosas lagrimas de dor... Agnes chorava diferente de Lúcia: Suas lágrimas eram abundantes e gemia alto. Padecera por dez dias. Por dez dias na casa delas só o choro de Agnes pode ser ouvido.

Agora, a casa estava silenciosa. Estaria silenciosa quando Lúcia voltasse para lá. Seria para sempre silenciosa.
Em certo momento Lúcia olhou para a cova. Percebeu que a irmã já não era visível. A terra já a tinha coberto. Agnes agora era um monte de carne podre, ossos e pelos coberto por terra.

Um monte de carne podre, ossos e pelos coberto por terra...

Lúcia, de repente, sentiu que duas grandes lágrimas rolavam por suas faces.

Enxugou o rosto com a manga da camisa. Assoou o nariz com os dedos. Respirou fundo. Chorara já muito na vida. Chorou quando seus pais morreram. Chorou quando seus irmãos e seu noivo se foram daquela aldeia, e chorou mais ainda quando soube que eles estavam mortos. Mas sempre havia a irmã para chorar com ela. As duas se uniam mais e mais em cada momento doloroso, as lágrimas de uma eram também da outra. Agora Lúcia chorava sozinha. Ela parara de jogar terra em volta e agora olhava em volta. Procurava por algo que não sabia definir. Sentia dificuldade em respirar. Ainda estava com a pá na mão.

- Lúcia, você precisa de ajuda?

Ela se virou em direção da voz. Era o Padre, o octogenário pároco da aldeia, um respeitável senhor de cabelos completamente brancos.

E vendo-o Lúcia descobriu o que sentia: Vontade de ser abraçada. Vontade de ter alguém para enxugar suas lágrimas e limpar seu rosto, como ela e Agnes fizeram uma com a outra em tantos momentos tristes. Mas a irmã estava morta...

O Padre se aproximou, preocupado com Lúcia. Não perguntou o que ela tinha. Ele sabia. Agnes tinha sido mais uma vitima das doenças que matavam tantas moças na aldeia. Essas doenças, mais do que do corpo, eram da alma. O que as moças sentiam era a dor da falta de esperanças, a tristeza pela ausência dos pais, dos irmãos, dos noivos e dos namorados. E embora condenasse tanto apego dessas moças às coisas desse mundo, nem por isso podia deixar de sentir pena delas. Lúcia (e Agnes) deveria estar casada, com filhos. Mas seu noivo estava morto...

Ela devolveu a pá ao padre, se despediu e rumou até sua casa, onde agora morava só. Onde teria o resto da vida para chorar e se lamentar, em sua solidão desesperada. Em perpétuo silêncio. Com suas dolorosas lembranças.

O Padre contemplava Lúcia com tristeza. Ele pensava na Lúcia, em Agnes e nas outras moças que morreram ou enterraram suas irmãs mortas durante a semana. A aldeia, vazia de homens, estava cheia de gente fraca: velhos, como o próprio Padre; meninos, que logo seriam chamados para se juntar aos seus pais e seus irmãos mais velhos na guerra, os que ainda tinham pais e irmãos vivos; e moças, como Lúcia, cada vez mais solitárias.

Nas arvores do cemitério havia muitos ninhos de passarinhos, e o Padre se sentia triste também quando os olhava. Mas era uma tristeza serena, pois os pássaros faziam o Padre meditar sobre a condição humana. Os ninhos eram uma prova que os pássaros da aldeia eram mais felizes que os seres humanos, pois ainda podiam se casar e constituir família. Por vezes o Padre se sentia desesperado e quase perdia a fé. Afinal, porque Deus negara a pobres moças, como Agnes e Lúcia, o que concedia a passarinhos? Mas logo o Padre chegava a conclusão de que não era realmente culpa de Deus. O problema era que os pássaros eram mais sábios que os seres humanos. Eles não organizavam nações para fazer a guerra contra seus semelhantes, não enterravam seus mortos entre lágrimas angustiadas, não se apartavam do mundo para se dedicarem exclusivamente a suas lembranças e não sabiam o que é a tristeza, este mal n'alma dos homens que enfraqueciam sua saúde e os tornavam vulneráveis às doenças mais dolorosas.

terça-feira, abril 19, 2005


por André de Oliveira

Em um dos seus inúmeros livros, Viktor Frankl nos diz : “Hoje a frustração existencial desempenha um papel mais importante do que nunca. Pensemos simplesmente o quanto o homem de hoje sofre não só com a perda progressiva do instinto mas também com a perda da tradição : na dimensão vital, as missões da vida são determinadas por instintos, e na dimensão social por tradições. Mas, ao homem que foi expulso do paraíso, onde havia abrigo e segurança proporcionados pelos instintos, e especialmente ao homem atual, que além da perda de instintos ficou entregue a si mesmo depois da perda da tradição, não é indicado pelos instintos o que ele tem que fazer nem pelas tradições o que ele deve fazer : a sua busca de sentido ainda lhe diz que ele quer o dever. Mas ele freqüentemente não sabe mais nada o que deva querer. É o vácuo existencial, o vazio interior e a falta de conteúdo, o sentimento de perda do sentido da existência e do conteúdo da vida.” Aqui se encontram as causas, sendo a primeira a perda dos instintos. Em verdade, esta não é bem uma causa, mas algo intrínseco ao ser humano, que o diferencia dos outros animais. Estes são guiados pelos instintos, e tudo que fazem depende deles.

O homem, sendo um animal racional e espiritual, não pode se guiar exclusivamente pelos instintos, pois ele é capaz de julgar e entender as conseqüências dos seus atos. Ou seja, para o ser humano a pura inocência do animal não pode mais ser aplicada devido a sua própria estrutura ontológica. O próprio Frankl, citando Novalis, explica-nos melhor isso : “no caminho de seu desenvolvimento ascendente, a escada pela qual o homem subiu veio abaixo – já não há volta para a existência puramente animal. Em outras palavras : o puramente natural seria para o homem o menos natural.” Mais adiante, ele encerra a questão : “a natureza do homem é completamente espiritual, e quando não o é decaiu ao nível do não espiritual, que não pode ser confundida com a não-espiritualidade do animal.” Em síntese : a perda dos instintos é própria do ser humano, e não um defeito. Ela retira dele a inocência pura dos animais, mas injeta-lhe responsabilidade e possibilita que ele penetre no campo espiritual e encontre a Deus.

E é aí que entra a verdadeira causa do vácuo existencial que assola a modernidade : a perda das tradições. O homem moderno perdeu seu principal guia. Quando separou a inteligência da moral, o homem também separou o espírito da razão. Eles se encontravam unidos nas tradições. Hoje o homem se guia unicamente pela razão, sem entender que ela sozinha, sem uma base onde se sustentar, é o puro caos. E essa base é o espírito. É ele que faz o homem perceber a eternidade e a imutabilidade que sustenta a transitoriedade da vida. Enfim, é ele que nos possibilita ter fé em Deus.

A negação da existência de Deus é autocontraditória, ou seja, não crer em Deus é de uma burrice infinita. É fácil provar isso. Sem a imutabilidade e a eternidade para sustentar a temporalidade e o espaço em que vivemos, teríamos de crer que o guia maior do homem é o próprio homem. Sendo reconhecidamente um ser volúvel e cheio de defeitos, o que um guia desses poderia nos proporcionar ? É por acreditar nele próprio como orientador que o ser humano de hoje resolve tudo em convenções : convenciona-se o que é moral e o que é imoral, o que é certo e o que é errado, baseando-se nas opiniões de um ser reconhecidamente defeituoso. Não é de admirar que essas convenções mudem constantemente e que a imoralidade de hoje se torne a moralidade de amanhã. Um ser que pretende ter como guia a transitoriedade e o defeito é um ser que abdica de encontrar a verdade. Eu não quero dizer que aquele que se guia pelo espírito seja perfeito. O que quero enfatizar é o óbvio : a busca da verdade tem que tomar por pressuposto a própria existência da verdade. E acreditar na verdade é acreditar numa única verdade, ou seja, não podem existir duas ou mais verdades, pois uma anularia a outra, nem pode a verdade mudar de uma hora para outra, pois também deixaria de ser a verdade. Portanto, a existência de Deus, Verdade única e imutável, não é apenas lógica e necessária, ela é essencial para que o homem acredite nele próprio. Não foi de brincadeira, nem para fazer joguinho de palavras que Henri Muller sentenciou : “o homem que não crê em Deus não existe”. Não há nada mais certo nesse mundo. Só espero que os historiadores do futuro não tenham que descrever uma sociedade que , em verdade, nunca existiu : a nossa.

Portanto, a perda das tradições, ou seja, a impossibilidade de se guiar pelo espírito, tornou o homem um nada. Não podendo voltar a se guiar pelos instintos, pois a sua condição de ser humano o impossibilita disso, nem podendo ter a Verdade como orientadora, o homem moderno se perde num labirinto de contradições, tendo que buscar consolo na própria transitoriedade da vida. A conseqüência natural disso é a procura contumaz de prazer : o álcool, as drogas, o sexo, a violência, enfim, todas as fontes de prazer passageiras, que fazem do homem um ser inexistente ontologicamente.

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quarta-feira, abril 13, 2005


por André de Oliveira

No livro “ Corpo, Alma e Saúde ”, Giovanni Reale demonstra como era entendido o conceito de alma na Grécia na época de Homero. Deixemos que o próprio autor fale: “ A psyche nos poemas homéricos é a imagem do morto privada de consciência e de iteligência ”, ou seja, “ a psyche não é a idéia da vida enquanto tal, mas a idéia da vida-que-se-vai e particularmente a idéia do morto ”. Não havia a idéia da imortalidade da alma, pois ela não era o eu do indivíduo, mas o que restava dele depois da morte, representando apenas o que ele foi. Por isso a imortalidade só era possível pela lembrança das realizações humanas, dos gestos heróicos.

Depois ele nos ensina que os gregos daqueles tempos não tinham a idéia de corpo como algo unitário que representasse o indivíduo. Enquanto vivo, o corpo só era compreendido na sua multiplicidade, ou seja, cada função vital designada na narrativa homérica simbolizava o todo do homem naquele momento. O bater do coração ou o golpe dado com o braço faziam esses órgãos representarem, no momento em que eram enfatizados, o homem por inteiro, isto é, cada parte simbolizava o todo em determinado momento. No dizer de Fränkel : “ O homem identifica-se, portanto, com a sua ação, e se deixa compreender de modo completo e válido pela sua ação; ele não tem profundidades escondidas. [...] O homem homérico compreende-se muito mais no seu agir do que no seu ser. ” O termo “soma” era usado para designar o organismo depois de morto, e só aí era visto de forma unitária, mas justamente por deixar de ter qualquer função. Por isso é que a idéia de corpo como algo único que representasse a imagem do indivíduo só foi possível depois que a alma passou a designar a personalidade de cada um, ou seja, “o ser”, o que só ocorre com Sócrates. Isto significa que a idéia física do homem como um todo só surgiu depois da idéia de alma como, no dizer de Havelock, “ espírito que pensa, isto é, capaz tanto de decisão moral quanto de conhecimento científico, e a sede da responsabilidade moral, algo infinitamente precioso, uma essência única no reino da natureza ”.

Essa é uma fase belíssima da história humana, pois precede as conquistas fundamentais de Sócrates, Platão e Aristóteles. É uma época de transição. Os filósofos naturalistas exprimiam muito bem esse aspecto do seu tempo ao tentarem encontrar um elemento que fosse a origem de tudo. Esse empreendimento demonstra que eles já tinham uma visão unificada da natureza, ou seja, já concebiam a multiplicidade do mundo numa unidade, simbolizada como origem. Apesar disso, ainda não possuíam a idéia de consciência, ou seja, não eram conscientes de serem conscientes, por isso não poderia ainda haver conhecimento do tipo científico. Como bem enfatizou Olavo de Carvalho na sua aula 5 - Os Pré Socráticos - , não era bem filosofia o que se fazia naquela época, pois o tipo de conhecimento era mito-poético, mesmo que sua forma de apresentação houvesse passado da narrativa para a de lei geral.

Num determinado instante, essa vontade de ver a unidade na multiplicidade atinge o ápice em Parmênides, quando este enuncia que só existe o Um, negando o múltiplo. Só é possível superar a contradição intrínseca ao pensamento parmenídico quando o Um é visto comO transcendente, o que só ocorre depois da idéia do homem também como ser transcendente, depois de Sócrates e, principalmente, Platão.

O que é incrível nisso tudo é a constante necessidade de conquistas espirituais antes que se pudesse realizar as conquistas físicas, pois o homem não apenas só consegue conceber a idéia de corpo vivo unitário após se compreender como alma transcendente, como não é capaz de alcançar um conhecimento científico antes de se libertar da visão materialista dos pré-socráticos.

Apesar disso, o homem moderno despreza todas essas conquistas e avança no conhecimento científico sem compreender que ele só foi possível devido à visão espiritual e transcendente do mundo dos 3 primeiros filósofos gregos. Relegando-os ao esquecimento, arvora-se a elaborar hipóteses para explicar a origem do universo que se aproximam cada vez mais da visão mito-poética dos pré-socráticos. Contentando-se com os resultados tecnológicos propiciados por suas teorias, o ser humano acredita estar no caminho certo, esquecendo-se desta máxima : “ de que servirá ao homem ganhar o mundo inteiro se isso redunda em detrimento da sua alma ? ”. É a verdadeira barbárie dos tempos modernos.

terça-feira, abril 05, 2005



por André de Oliveira



Aristóteles definiu o homem magnânimo como aquele que é grande e sabe que é grande, o que corresponderia proporcionalmente ao conceito comum de humilde: aquele que é pequeno e sabe que é pequeno. Mas Santo Tomás foi além e definiu o homem verdadeiramente humilde como aquele que é grande e sabe que é pequeno. É importante frisar que não se trata de inconsciência, ou seja, de não reconhecer o bem que se faz ao mundo e ao próximo, mas de saber que, por mais que se faça, é sempre muito pouco diante da grandeza de Deus. Daí a necessidade da graça. Sem reconhecer esta necessidade, nenhum homem é verdadeiramente humilde.

A maioria de nós não se encaixa em nenhum dos dois conceitos. Não somos magnânimos nem tão pouco verdadeiramente humildes. Há os que são pequenos e acham que são grandes e os que são grandes e fingem ser pequenos. Os primeiros são os famosos metidos a bestas e os segundos hipócritas. Mas os piores são os que são pequenos e fingem ser pequenos. São o próprio demônio em pessoa.

Para estes últimos, qualquer demonstração de conhecimento é sinal orgulho. Pensam que o único objetivo dos que estudam é humilhar o próximo. Gostam de dar palpite sobre tudo, mas quando você prova a deficiência de seus conhecimentos, desistem da discussão, passam a agredi-lo e comparam-no a um tirano que não admite a pluralidade de opiniões. São estes tipinhos que estão destruindo o mundo, conduzindo-o consciente ou inconscientemente às trevas.

Um deles pode chegar para você e dizer: “Já leu o Código Da Vinci? Vai abrir sua cabeça e mudar sua vida”. Nem experimente perguntar se, antes de ler o tal livro, recém-escrito, ele tentou ler a Bíblia, os escritos de Santo Agostinho, de Santa Tereza, de Santo Tomás. Vai se dar mal. Ele vai achar que você também nunca os leu e está citando-os apenas para humilhá-lo. Ou então vai dizer que nada tão antigo pode conter mais verdades que páginas saídas quentinhas do forno. É do tipo de gente que se orgulha da superficialidade de seu conhecimento e ainda se arvora a dar conselhos. Acham que todos os católicos são bobinhos que nunca experimentaram tomar novalgina para dor de cabeça nem ponstam para cólica menstrual e, por isso, resolveram recorrer a Deus. Aliás, deve ser por isso que os antigos eram mais religiosos: havia poucos analgésicos.

Para ele, que aprendeu cristianismo com Dan Brown, é impossível entender como algo tão fácil de refutar, ainda permanece intacto há mais de dois mil anos. Se ele, que é tão pequeno e tão humilde, pôde perceber isso, como autores renomados foram se deixar levar por tão excelsa bobagem?

A única forma de sair ileso de uma discussão com um sujeito desses é se fingir de cretino e dizer que tudo tem seu valor, mas que o aconselharia a ler uns livrinhos diferentes, quem sabe alguma coisa de Felipe de Aquino ou do padre Léo. Mas aí já terá vendido a alma ao diabo e não poderá mais se diferenciar dele.