terça-feira, maio 31, 2005



por Francisco Escorsim


Mais do que honrado com o convite para colaborar com alguns textos por aqui, fiquei numa dúvida atroz sobre o que escreveria. Foi então que lembrei que havia acabado de escrever algumas impressões sobre a leitura do livro "A Montanha Mágica" de Thomas Mann, sem pretensões de "publicação" onde quer que seja. Pensei comigo que talvez fosse uma boa idéia arrumá-las e aqui dispô-las para uma troca de impressões com os demais colaboradores e leitores que por ventura tenham lido referido livro. Com este único "objetivo", deixo as minhas impressões por aqui. E desde já peço desculpas pelo longo texto, que bem melhor ficaria num "papel" do que na tela do computador. Mas ao menos o blog permite a impressão e portanto, a responsabilidade pela melhor forma de leitura passa a ser do leitor e não do autor. Os convido pois, à leitura.

I - Uma Espécie de Preâmbulo:

Começo por uma impressão "profunda", como diria Saul Bellow, que o livro como unidade, me causou. Na orelha da edição que li consta a informação que Thomas Mann o escreveu logo após a Primeira Guerra Mundial. E a história do livro termina exatamente quando esta se iniciaria. A impressão portanto que o livro traz não é outra senão a própria impressão que aquele momento histórico causou em Thomas Mann.

É certo que para ele a “culpa” pela guerra não se encontrava em determinada corrente ideológica, ou numa moda científica ou mesmo apenas nos valores que aquela sociedade humana naquele tempo histórico realizava. Para Thomas Mann, o “buraco” era mais embaixo e tudo isto e mais um pouco formou o caldeirão de causas que desembocou nas grandes guerras do século XX. Thomas Mann não inocenta ninguém. Nem procura dar um sentido para o homem daquela época. Porque ele percebe que é exatamente o sentido da própria humanidade que se perdeu ali, antes de qualquer coisa. Thomas Mann vem a narrar as consequências da perda deste sentido básico e preliminar da própria possibilidade da vida em comum. Ele traz a história do declínio de uma sociedade, cujos sintomas não estão em outra parte senão no próprio homem que compõe aquela sociedade.

No pórtico do livro, o próprio autor informa seu propósito com a narrativa. E já aqui tem-se a primeira constante do livro. Thomas Mann vai explicar tudo, tim-tim por tim-tim. Ele não acredita mais na capacidade do leitor de ler nas entrelinhas. Ele vai explicando os momentos relevantes, dando significado ao simbolismo por ele próprio usado e quando não explica, a própria narrativa não deixa dúvidas do sentido dado. A obra é “pedagógica” neste sentido, talvez no mesmo intuito daquele dos personagens Naphta e Settembrini, mas com outro sentido e valor. E a explicação disto reside num paradoxo. Na última página Thomas Mann afirma que a história é hermética. Ou seja, confusa, obscura. E não poderia ser clara mesmo pois confusa e obscura é aquela época. Mas também é àquela sociedade que ele se dirige e não vê outro meio de se fazer entender senão ser o mais “didático” possível. É neste paradoxo que se encontra o autor, antes de iniciar a obra: “como me fazer ‘ouvir’ por quem já não sabe mais nem o que é, onde está e para onde vai ?”

O título dado ao livro não é só sugestivo. Ele é mais do que isto, ele é uma explicação. A simbologia da montanha nos diz que ela é local de morada dos deuses e objetivo da ascensão humana. Portanto, a ascensão à montanha é a evolução espiritual do homem, quando realiza o seu destino humano. É para esta montanha que supostamente nos dirigimos com Hans Castorp, o personagem principal, logo no começo. Portanto, é uma jornada em busca desta ascensão que encontramos ao começar a ler o livro. Mas o próprio título já avisa que isto não ocorrerá. Porque a montanha é mágica e portanto, ilusória. A montanha aqui toma então outro significado. Ela não será o local onde se encontra Deus, onde nos elevamos para adorá-Lo. Ali encontraremos outra coisa. E seja o que for, já sabemos que coisa boa não há de ser. A montanha mágica do título simboliza, portanto, o presságio de um desmoronamento.

Viajemos pois, com Hans Castorp, às alturas invertidas.

II - O Tempo dos Medíocres:

Logo no início Castorp se espanta com a novidade do local, do sanatório. Surpreende-se com a tosse de um dos doentes. E conclui com acerto: “É como se se descortinasse o interior do homem, e tudo fosse lodo e pântano...” Deveria prestar atenção às suas impressões, principalmente neste início. Essas intuições nada mais são do que a verdade da realidade que ele encontra. Mas a elas não dá ouvidos. E nem a seu primo ele ouve, quando esse, logo no primeiro jantar quando da chegada de Castorp, avisa que ali não há tempo, nem vida.

O tempo, talvez o elemento mais problemático e peculiar de todo o livro, que é tratado desde o seu início quando o autor expõe seus propósitos, até o seu final. Castorp constantemente tenta entender o que é o tempo, faz elocubrações, chega a algumas certezas provisórias e acaba por fim a se habituar ao tempo ditado pelos médicos. Mas afinal, por que o tempo é tão problemático ali ? O que significa o tempo, para começar a incomodar tanto ? Lê-se no livro que uma das correntes de idéias existentes na época atrela-se ao progresso da humanidade, tornando com isto a perspectiva do tempo algo angustiada, como se fosse o elemento a ser “vencido”. E assim o sentido do tempo parece se perder, parece tomar uma dimensão diversa, oprimente, misteriosa.

É um sinal de alarme, esta falta de compreensão do tempo. Porque o tempo nada mais é do que a própria vida. Uma vida só existe num determinado momento no espaço, como qualquer um sabe. Pode-se perder tudo, menos a noção de que você está aí neste exato instante. Do tempo/espaço você não foge. Santo Agostinho tinha uma imagem do tempo: imagem móvel da imóvel eternidade. Assim, o tempo humano é aquilo que permite ao homem movimentar-se, ser. Ele é uma medida, mas uma medida de vida, daquilo que o homem faz da sua própria vida no tempo a ele destinado “aqui embaixo”. O questionamento que se faz do tempo no livro não é um questionamento filosófico para compreendê-lo, é um sinal de alarme de que algo vai errado. Quando não há tempo, é porque não há vida mesmo, o personagem Joachim tinha razão. Espantar-se que o tempo às vezes corre devagar conforme o seu “conteúdo” é constatar apenas o óbvio de que a vida é quem preenche o tempo e não o contrário. Se este vai se preenchendo por conta própria, é porque da vida já estamos distanciados. Não espanta então que na sequência desta perda inicial, queira-se constantemente “matar o tempo”, fugir do tempo, sair dele. Procura-se cristalizá-lo em hobbies bobos, em passatempos, em marcar-se a vida pela hora de alimentar-se e não pela fome realmente que se sente. Neste sentido do livro, a saída da “noção” do tempo significa a saída completa da ordem cósmica, daquela ordem de espaço/tempo onde a vida deve ser vivida. E se saiu-se desta ordem, para outra certamente entrou-se. Estamos já, mais uma vez portanto, certos de que neste universo do sanatório Berghof, perdeu-se o sentido do tempo porque na verdade perdeu-se o sentido da própria vida.

Mas o sanatório, este outro universo, não está desconectado da vida da “planície”. Ao contrário, é por causa da planície que existe aquela mágica montanha. Se o tempo ali é profundamente problemático e alerta a consciência humana para sua falta de sentido, é justamente porque ali o tempo “sobra” para fazer-se apresentar. Na planície, o tempo tem tanto sentido quanto na montanha mágica, mas ocorre que na planície há muito mais opções de passar esse tempo para trás. O problema, pois, não é de local, nem de Hans Castorp, é um problema geral daquela sociedade naquele momento histórico.

Mas antes de continuarmos com Hans Castorp, vale a pena acompanharmos Thomas Mann quando explica porque razão Castorp é seu personagem, e não outro. E aqui se vê mais uma vez como o próprio autor, no fundo, explica seu próprio livro ao escrevê-lo. Avisa Mann que Castorp nada tem de especial. Não é melhor nem pior do que ninguém, nem mesmo é herói. É até simpático e muito comum. Castorp, na verdade, é um medíocre, porque medíocre é o mundo em que vive e outra coisa ele não poderia deixar de ser. Sua mediocridade não diz respeito a sua inteligência e personalidade, que era singela, mas sim que ela significava a mediocridade do próprio meio de que ele vinha. Era um exemplar apenas. Quando da narrativa de infância e adolescência de Hans Castorp, Thomas Mann bem demonstra que Castorp é filho da sua época. Bem inserido, atendia às exigências escolares e os deveres sociais. Tinha tudo para dar “certo”.

Mas o problema que Thomas Mann enxergava não era de ordem individual. Porque ele sabe que no geral, todo homem é tão medíocre quanto Hans Castorp e que depende muito do seu meio lhe fornecer valores e mesmo um sentido para a vida. Thomas Mann não escreve para aqueles seres dotados de um algo a mais, um que “heróico”, uma “vitalidade robusta” que consiga um isolamento moral e uma independência do meio e aí sim permita à própria individualidade transcender a época em que vive. Não, Thomas Mann sabe que esses não precisam ser avisados do que ele narra. Ele se dirige ao homem medíocre, àquele que não encontra no seu meio, um sentido para a própria vida. Deixemos que ele mesmo fale:

“O indivídio pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultrapessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as natureza mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.”

Eis o tema de fundo do livro, em como este ambiente podre do meio social lesa não só a alma individual como adoece o próprio corpo do homem. O sanatório, nas figuras dos dois médicos, o conselheiro e o psicólogo, dão a exata noção dessas duas doenças do homem. Um cuida do corpo, o outro da alma. O curioso e sensacional é que Thomas Mann tem uma noção exata do tamanho da desgraça do meio em que ele mesmo vive. Porque ele sabe que os médicos da alma cuidam mais de matá-la do que “curá-la”. Daí os evidentes símbolos da vestimenta do psicólogo, do local de seu consultório nas “catacumbas” do sanatório, do seu apego ao inconsciente, ao “paranormal”. Thomas Mann é claro como água. E assim o médico do corpo não consegue fazer mais do que adiar a morte, nunca consegue curá-la. E na maioria das vezes, seu remédio só piora o estado de coisas, pois coloca de vez os doentes fora do tempo da vida. Já o psicólogo “encanta” como um mágico, como palestrante. É o que dá o “sentido” àquela doença, que para ele, vem do inconsciente. É o que retira a responsabilidade de cada doente pela sua própria vida, envolvendo-a com valores invertidos de que é o doente, na verdade, quem tem chances de se curar, de resgatar o “amor perdido”. Thomas Mann não perde muito tempo com esse psicólogo, senão o suficiente para mostrar que ele está sempre por lá, que faz parte da loucura daquela época. Quando ele ganha uma relevância maior, não por acaso é quando Castorp atinge o “fundo do poço”. É o médico que gosta das “trevas”, como dizia Settembrini.

Mas entremos de uma vez com Castorp neste mundo mágico das alturas. Logo nos primeiros dias, em passagens aqui e ali, percepções de si próprio e conselhos de seu primo e outros pacientes, Hans Castorp já percebe que algo ali é estranho. E percebe isto nele mesmo, quando começa a sentir sintomas esquisitos e sente que seu corpo se “descola” da alma : “eu queria somente dizer que é uma coisa sinistra e penosa ver o corpo levar uma existência própria, independente da alma, e dar-se ares de importância (...)”. Desta percepção, ele tenta encontrar uma resposta, um sentido para esta constatação: “e a gente se esforça por encontrar um sentido nessa coisa; procura-se a emoção indispensável, um sentimento de alegria ou de medo, que as justifique de certo modo(...)”.

Mais além, ele escuta um dos pacientes brincar com um revólver e dizer que se a consciência dele começar a incomodar muito, ele dá um tiro na cabeça e resolve logo o problema. Castorp, portanto, não pode dizer que não sabia onde estava se metendo. Mas ele se entregou a esta coisa sinistra e penosa que ele mesmo percebera e se exalta com as “possibilidades” do local. Chega a dizer que em poucos dias está se sentindo mais inteligente. Ouvindo isto, um dos personagens principais, o escritor Settembrini, também paciente ali, o pede para que se vá embora deste mundo em que se vive na “horizontal”. Castorp desdenha do perigo, não dá ouvidos à sua consciência. Começa então a romantizar a doença e seu estado “humano”.

Neste ponto, novamente Settembrini intervém e adverte. Logo mais me aterei a este personagem fascinante e dos mais paradoxais da história, mas por ora, com sua ajuda, estabeleçamos muito claramente como o medíocre Hans Castorp se apresenta e se oferece à degradação. Settembrini percebe esta “tendência a se arraigar no caráter” do jovem e toma para si a tarefa pedagógica de corrigí-lo. Ante a esta tendência de Castorp de ver na doença uma forma de espiritualização (de ascensão à montanha dos deuses), Settembrini avisa: “não me fale da ‘espiritualização’ que pode resultar da enfermidade, por amor de Deus não faça isto ! Uma alma sem corpo é tão desumana e horripilante quanto um corpo sem alma. A primeira é, aliás, uma rara exceção, e o segundo, o mais comum. Via de regra é o corpo que exubera, açambarca a vida e toda a importância, e se emancipa da maneira mais asquerosa. Um homem que vive enfermo é corpo e nada mais, e nisto está o anti-humano, o aviltante...na maioria das vezes não vale mais que um cadáver”. Joachim lembra então que o próprio Castorp disse algo parecido tempos atrás. E isto só confirma a opinião de Settembrini sobre Castorp: “(...)é um diletante do espírito e simplesmente se entrega, à maneira dos jovens talentosos, a experiências com toda espécie de conceitos possíveis.”

Mas vimos acima o que diz Thomas Mann quando esses jovens talentosos vivem num meio e num tempo histórico medíocre, que não lhes dá um sentido, não traz esperanças, perspectivas. Isto os paralisa, os adoece a alma e em consequência, a própria vida orgânica. Não havendo um próprio encaminhamento do meio aos jovens para aquilo que os eleva e transcende, que os coloca no rumo de realização da própria missão humana, tais jovens talentosos são como cavaleiros errantes em busca de um reino onde servir. São nômades em busca da sua terra, mas que não sabem onde esta fica. E enquanto isto, quando não se sabe que se tem uma casa, qualquer lugar vira um lar. Numa situação assim, ganha contornos absolutamente imprescindíveis e decisivos, o educador, o pedagogo, alguém que consiga mostrar ao jovem talentoso que nem toda “experiência” é admitida e lhe será benéfica. Concluamos com Settembrini, novamente: “Um jovem de talento não é uma folha em branco, senão uma folha sobre a qual já tudo foi escrito, com tinta simpática, por assim dizer, tudo, tanto o bem como o mal, e cumpre ao educador desenvolver decididamente o bem e apagar, mediante uma influência adequada, o mal que deseje manifestar-se...”

Settembrini se arroga o direito de representar esta papel de educador de Hans Castorp, que como já vimos, se entrega à qualquer experiência de conceitos possíveis. É mesmo um diletante do espírito. Mas e Settembrini, seria ele verdadeiramente um educador, um Virgílio a levar Hans Castorp a atravessar o inferno da mediocridade reinante nele próprio ? É claro que não. Se o fosse, não era também um paciente daquele sanatório...

Já disse que Thomas Mann não nos esconde nada na narrativa. Não é à toa pois, que no capítulo intitulado “Satã”, Settembrini seja apresentado... mas isto é um paradoxo tremendo no romance, porque Settembrini não é pior do que muitos outros. Se ali havia o dedo do diabo, Settembrini não o encarnava sozinho, nem com a pior parte. Por que então ser chamado de Satã ? Apelo à simbologia, novamente. O símbolo do demônio, do diabo, do satanás, traz inúmeros significados. Cabe ao intérprete, dado o caso concreto, correlacionar a significação correta, dando plenitude de sentido àquele caso. Pois bem, na simbologia cristã, o demônio nem sempre é mau, seja por sua origem ou sua natureza. Mas ele é sempre o anjo que traiu a sua natureza. Me parece que é neste sentido que vemos Settembrini como o Satã da história: aquele que traiu a sua natureza.

Mas que natureza é esta do escritor ? Ora, é ele, mais tarde também “auxiliado” por Naphta, a voz da razão humana contra a degradação do meio social em que vivem. É a voz que conclama a Hans Castorp que não se “entregue” ao seu corpo, dissociando-se de sua alma, de sua consciência. Que não se entregue às “paixões” do corpo e aos desfrutes psicológicos, mas que assuma sua condição de ser racional e cumpra seu dever para com si mesmo. É pela natureza do pedagogo, do guia, do mestre e guru que Settembrini "é" no romance. Nessas alturas, sendo Satã, já sabemos que esta natureza ele traiu. Como e por que ? Deixemos para mais tarde. Por enquanto, basta esta constatação, até porque, Castorp não se deixa influenciar por Settembrini. Melhor dizendo, nem consegue se deixar influenciar. Por que ?

Melhor deixarmos Castorp mesmo nos explicar : “no início a gente se escandaliza e experimenta sentimentos de distância, mas de repente ‘intromete-se qualquer coisa completamente diversa’, que ‘nada tem que ver com o juízo’, e logo se acaba a indignação moral, a ponto de as pessoas se tornarem quase inacessíveis a influências pedagógicas de natureza republicana ou eloquente.” O próprio Thomas Mann, no seu caráter pedagogo (mas aqui no verdadeiro sentido desta missão), já nos respondeu naquele trecho inicial o que era essa coisa “diversa”. A falta de sentido, de finalidade no meio em que se vive, paralisa o homem, que fica mediocrizado. E aqui Mann acrescenta de que modo esta falta de sentido se “realiza” no homem, personificado em Castorp. Moralmente, o sujeito deixa de usar o juízo, a razão. E aos poucos, começa a experimentar exatamente aquele tipo de vida que o preocupava antes, de que ele se escandalizava.

Este paradoxo, este dilema, assim se configura internamente em Castorp, nas suas palavras:“(...)escutava o senhor Settembrini com a finalidade exclusiva de obter da sua consciência plenos poderes que primitivamente não lhe quisera outorgar. Mas, que ou quem é que encontrava do lado oposto ao patriotismo, à dignidade humana e às belas letras, desse lado onde Hans Castorp pensava ter reconquistado o direito de dirigir seus pensamentos e atos ?” Ou seja, Castorp ainda não estava completamente enfermo, para prescindir do juízo. Contudo, dando clara visão de que perdia a luta para o “lado oposto”, que mais tarde trataremos, transferia a função da sua consciência e de seu juízo para Settembrini. Fosse Settembrini um legítimo pedagogo ou não, certamente pouca culpa ele tem em relação a Castorp, pois em nenhum momento este poderia transferir a outrém o seu dever humano de dirigir seus pensamentos e atos conforme a sua consciência racional. E tornando-se cada vez mais medíocre, tinha consciência disto: “eu mesmo deveria, talvez, formar com mais frequência uma opinião própria, em vez de aceitar as coisas como se apresentam”.

Ora, é evidente que o tal “outro lado” venceria esta disputa, ficando a razão do sr. Settembrini apenas como adorno “cultural” suficiente para dar uma aparência de vida ao que já estava como um cadáver. E este outro lado personificava-se na figura de Clawdia Chauchat, por quem nosso “herói” se apaixona perdidamente. Thomas Mann deixa claro desde o princípio o quanto esta paixão nada tem de nobre, de edificante. Começa por Hans Castorp odiar Clawdia, que é vulgar, mal educada, o irritando mesmo. Aos poucos, quando Castorp vai “experimentando” aquele tipo de vida, mostra-se bem que quando a ela se habitua e se entrega, o que acontece realmente: invertem-se seus valores. O que ele mantinha distância e o escandalizava, torna-se agora sua razão de viver, aquilo que o irritava, agora o apaixona. O “amor” por Clawdia nada mais é do que o símbolo desta inversão e imersão de Hans Castorp. Não espanta, nessas alturas, que nas suas elucubrações sobre o Tempo, ele confesse que um único aspecto deste, sempre lhe escapava: sua duração real.

Neste ponto, Thomas Mann não resiste e reafirma o que vem dizendo desde sempre: “Hans Castorp não teria ultrapassado o prazo preestabelecido para a sua estada ali em cima e nem sequer teria alcançado, nesse ambiente, o dia em que paramos, se a sua alma singela houvesse encontrado, nas profundezas do tempo, uma informação satisfatória quanto ao sentido e à finalidade desse serviço que é a vida”.

Aqui confesso meu desejo de desistir de Hans Castorp. Não me interessa o mergulho no irreal, no mágico mundo dos prazeres sensoriais e nas enfermidades “dignificantes” do corpo e da busca de respostas no inconsciente. Não me agrada falar de um “amor” corrompido, indigno, símbolo da derrota humana ante o dever da vida. De que adianta trazermos aos nossos olhos, os esforços inúteis de Settembrini, que embora corretos no princípio, não escondem o perigo da semente da “traição” à natureza humana ? Para que dissecarmos o corpo humano, mostrando-nos nele o efeito do veneno da falta de sentido que corrompe a alma ? De que valem aduzirmos à irrealidade do tempo naquelas alturas ? Lembrarmos dos estudos “científicos” de Castorp e do breve desejo de conhecimento que se lhe surgiu ? Para que falar disto, quando o sentido que se dá a tudo isto, a esta busca, está perdido e falto na consciência ? Para que fugirmos do tempo com Castorp, e da nossa própria vida para entendermos como funcionam os enfermos dela ? Não, poupo-me desse sacrifício. Não fico mais um minuto neste sanatório e nesta companhia. Fico por fim, com as palavras do médico Behrens sobre Castorp, as quais assino embaixo:

“O senhor sempre quer que tudo seja inofensivo, Castorp. É essa a sua índole. Às vezes não se mostra avesso ao contato com coisas nada inofensivas, mas então as trata como se fossem perfeitamente inocentes, e com isso pensa agradar a Deus e aos homens. O senhor é uma espécie de covarde e de hipócrita, meu caro(...). O senhor quer me importunar e maçar, para que eu o confirme na sua maldita hipocrisia e para que o senhor possa dormir o sono dos justos, enquanto outras pessoas velam e se expõem à tempestade.”

III - Meu Nome É Legião:

Falei por demais do homem medíocre, mas é a ele que Thomas Mann se dirigia. Me interessa então, alguém que enfrente a mediocridade reinante, vencendo-a ou não. Chamou-me a atenção assim, três personagens, tão diferentes entre si e tão próximos quanto à derrota de si mesmos. Tratei ainda que preliminarmente, de Settembrini e Naphta, duas faces de uma mesma moeda, a encarnação dos ideais de uma época, de um tempo histórico. Formam os “frutos” da razão do século XX, plantados já há mais tempo do que quando este nascia. O terceiro personagem é o ambíguo Peeperkorn. Comecemos pelo último.

O holândes Peeperkorn, já idoso, aparece no livro unicamente como dotado de uma forte personalidade, que se irradia por onde se encontra, encantando e envolvendo. Sabedor hoje que ser detentor de uma personalidade já é significar muita coisa, interesso-me pelo tipo. Uma verdadeira personalidade é aquela que transcende, de certa maneira, a própria individualidade. É quem, “vencendo” as etapas de vida, se aproxima do verdadeiro destino humano. Ter personalidade é a senha de entrada para o mundo espiritual, para aquilo que transcende e abarca o indivíduo. É o degrau absolutamente necessário para se realmente ser em Deus. Teria realmente Peeperkorn uma personalidade ? Sua ambiguidade deriva exatamente da falta desta resposta. Se Peeperkorn tinha uma personalidade, certamente a estava “perdendo”. Afinal, estava ali tão enfermo quanto os outros. Aliás, nunca nos esqueçamos que tratamos aqui, sempre, de perdedores.

Mas voltemos ao holandês. Certa altura Thomas Mann adverte que este é um tipo “esfumaçado”, “nebuloso”, e portanto, não nos podemos fiar nem nele, nem em Castorp sobre sua personalidade. Mas é evidente que algo ele tinha. Arrisco o palpite que estamos diante de um daqueles “heróis” que Thomas Mann nos falou logo no início deste texto. De alguém que sabia a falta de sentido da vida vivida pela sociedade em que estava, pela falta de perspectiva do seu meio. Um daqueles que resolveu enfrentar a mediocridade, tornar-se maior do que o seu tempo. Sua entrada na história me demonstra que parcialmente ele assim estava vencendo, mas que algo o retirou de seu bom caminho. Peeperkorn perdeu-se. Neste sentido, me parece que seja um dos personagens mais simbólicos de todo o livro. Três símbolos fornecem todo o arcabouço do significado de Peeperkorn. Primeiro, a águia, que num passeio com alguns de nossos personagens, ele chama a atenção destes para ela, pedindo a ela que descesse e cravasse suas garras na cabeça e nos olhos do homem. No meio tempo, uma cachoeira que visitaram, diante da qual ele faz um discurso inaudível pelos outros. Por fim, o suicídio com veneno de uma das serpentes mais mortíferas, a naja.

De que modo esses símbolos condensam Peeperkorn ? A águia é a rainha das aves, coroa ela assim toda a simbologia dos estados espirituais superiores, onde se encontram os anjos. Aqui, ela é um símbolo íntegro da força do Espírito Superior, da Divindade. O pedido de Peeperkorn para que ela crave suas garras, aplique sua punição na cabeça do homem, é símbolo claro da falta do homem perante o Espírito. A cabeça tem simbologia deste Espírito manifestado, manifestado no corpo, na matéria. A cabeça do homem de então não tem mais a autoridade de governar o homem, pois não pôde conter a exaltação do corpo diante do Espírito. Eis seu crime. Já os olhos, é símbolo claro da percepção intelectual, da intuição da verdade do mundo e das coisas. Vimos exaustivamente o quanto Hans Castorp não deu ouvidos às suas intuições. Já não tem mais o olho humano o direito de ser o receptor da Luz. Que o Espírito puna o homem, na cabeça e nos olhos. Vê-se pois, que Peeperkorn tem consciência da falta do homem daquela época e da falta dele próprio. Sabe que não é digno do Espírito, aceita e suplica pela punição que o redima.

A cachoeira em que ele faz seu discurso de “despedida”, tem uma simbologia na história emparceirada com a simbologia da montanha. A montanha é o movimento ascendente ao espírito. A cachoeira é o movimento descendente da atividade celeste, que manifesta suas infinitas possibilidades ao homem. Mas ela vem como símbolo dinâmico, já que uma cachoeira nunca é a mesma, pois o movimento da água sempre a modifica, o que vale dizer que representa ela também a corrente das forças que o homem precisa dominar com vistas a um aproveitamento espiritual. Temos conhecimento suficiente da história para sabermos que tais forças nem de longe foram dominadas por ninguém ali. Peeperkorn novamente parece saber delas e da sua falta para com o Espírito. Seu discurso é de despedida mesmo. Despedida de quem perdeu. Ninguém consegue ouvi-lo e isto é significativo, pois isto tanto pode significar que ali ninguém era digno deste discurso, como também significar uma nova manifestação das forças celestes, impedindo que um indigno fale em seu nome.

Por fim, a serpente. Não é por acaso que temos a águia e a serpente juntas aqui. Isto porque elas significam inimigos simbólicos. Significam a dualidade entre o Céu e a Terra, a luta entre o anjo e o demônio. A serpente aqui encarna o lado do homem em que a sua razão não tem o menor controle. Pode ela significar os vícios do corpo, do prazer, como vários outros vícios da vaidade. É um símbolo riquíssimo, quase inesgotável. Me basta, nesta história, vê-la como o símbolo da desintegração do homem por ele mesmo, entregue ao seu próprio corpo e suas paixões, em desperdício da sua alma e do Espírito purificador. O vício, enfim, do alcoólatra Peeperkorn. Me parece que ele tinha consciência exata da sua falta, o que demonstra que realmente tivera uma personalidade, no exato rigor do termo. Não por outra razão quis morrer pelo seu vício, simbolizado no veneno da serpente Naja, como se, indigno da morte redentora do corpo humano, abraçasse sua falta inclusive para o além deste mundo. Uma honra às avessas.

Restam as duas faces da mesma moeda: Settembrini e Naphta. A mesma moeda da razão que imperou durante todo o século XX e ainda hoje. O primeiro com seu amor pelo progresso humano, no sentido material, de progresso das nações, do avanço tecnológico. Um individualista ferrenho, liberal e burguês. Positivista, acredita no poder do homem de comandar todas as coisas. Chama-se a si mesmo de um humanista. Acredita na salvação do homem pelo homem. Condensa Settembrini boa parte das idéias em voga no início do século XX e mesmo depois. Positivismo, liberalismo, capitalismo, industrialização, nacionalismo, O Progresso da Ciência, da técnica, etc.. Nem tudo é coerente, nem tudo é certo, nem tudo é errado. Naphta, um padre jesuíta, é apresentado no capítulo intitulado “Mais Alguém”, em clara valoração por Thomas Mann. A princípio, ele surge como o defensor da tradição judaico-cristã contra o progressismo e materialismo do novo século que desalojando Deus de seu lugar, colocou em seu altar o próprio homem. No fundo, é isto o que defende Settembrini. Mas não demora muito e os reais valores de Naphta aparecem também. O surrado discurso comunista, socialista, travestido com uma roupagem interpretativa das Escrituras suficientemente distorcida, mostram bem quem é Naphta.

Thomas Mann é brilhante no mostrar quem é na verdade, um verdadeiro comunista. Deturpando os ensinamentos cristãos, antecipando e muito a tal da “teologia da libertação”, vê Naphta que o mundo é dos “pobres”, do proletariado e que a única saída é a revolução, a guerra. Maniqueísta, escolhe o lado do “bem”, com o proletariado, contra o do “mal” com a burguesia. Justifica dizendo que Jesus foi o primeiro desses revolucionários. Não é diferente de Settembrini e desaloja Deus de seu lugar, também colocando o homem no altar. Ainda que ele tenha que ser pobre. Mas a contradição intrínseca do comunista aparece na própria forma de ser de Naphta, que mora em um elegante quarto, com vários luxos. A quem quer tanto louvar a pobreza, a luxúria burguesa em que vive revela muito.

Ambos se arrogam pedagogos e disputam a alma de Hans Castorp. Nesse ínterim, travam inúmeros debates retóricos, onde na maioria das vezes se confundem as vozes, não se sabendo quem está defendendo o que. Mas ambos perderam a parada para o desleixo de Hans Castorp. Porque ambos só tem uma chance de conquistar Castorp, através do discurso racional, ainda que somente pela retórica e não pela demonstração da verdade. Mas Castorp já havia desistido de pensar, de comandar-se. Entregou-se àquela “enfermidade” da vida. Isto o “salvou” dos pedagogos e ele próprio percebia que ambos tinham seus defeitos. Aqui é Castorp que acaba sendo o lúcido: “esses dois levavam tudo ao extremo, como talvez fosse necessário, quando se queria discutir. Disputavam encarniçadamente em torno das alternativas irreconciliáveis, ao passo que a ele próprio parecia patente que em alguma parte entre essas posições incompatíveis, entre o humanismo retórico e a barbárie analfabeta, devia encontrar-se aquilo que ele, pela sua pessoa, podia reputar de humano.”

Talvez Castorp tenha razão e em algum lugar daquele palavreado vazio, encontrássemos o verdadeiro sentido do humano. Mas Thomas Mann, além de expor brilhantemente as contradições internas de cada “partido”, deixa claro que nenhum tem razão. Nenhuma dessas idéias trazia consigo o verdadeiro valor do ser humano. E aqui a simbologia da montanha mágica ganha todo seu significado. Porque quando o homem sobe ao cume, ele o faz para louvar e adorar a Deus. No caso, a humanidade, “refém” dessas idéias nada humanas, se elevava à montanha não para adorar a Deus, mas adorar o próprio homem e seus ídolos (progresso, pobreza, etc...). Neste caso, o símbolo da montanha ganha o contorno de um presságio de um desmoronamento pela soberba do homem. O mundo assim, está prestes a ruir.

Aqui, a montanha mágica de Thomas Mann nos remete à bíblica Torre de Babel. Esta torre simboliza a confusão. Lá como aqui, o homem presunçoso eleva-se desmesuradamente. Mas é impossível ao homem ultrapassar sua própria condição humana. E é isto que tanto Settembrini quanto Naphta gostariam de ver. Ambos, neste afã de libertar o homem da sua condição humana, que sempre foi precária e continuará sendo até o final dos tempos, acabam transformando o homem num deusinho pedante e orgulhoso, que acredita ser capaz de “salvar” o próprio homem da sua imperfeição. Não é por acaso que a torre de Babel foi construída após um período de progresso da humanidade, no sentido da criação de impérios e grandes cidades. O fenômeno da torre é um fenômeno social. O homem enquanto coletividade se crê capaz de chegar aos céus e transcender sua própria condição. Mas não pela humildade de coração e temor a Deus, e sim pelo orgulho e pela soberba de se crer capaz de ser melhor do que Deus. Mas uma coletividade não é algo de concreto. Quanto mais o homem “sobe” pela própria força, mais cada um tende a se sentir um Absoluto. A coletividade assim, não tendo a Unidade própria de Deus, evidentemente transforma-se em confusão. Os homens já não se entendem, não falam mais a mesma língua. Uns apontam uma direção, outros outra. Tornam-se irreconciliáveis. A tirania do coletivo explode assim em grupos e facções hostis entre si.

A sociedade déspota de si mesma, mal percebe que não possui alma e que está fadada à dispersão. Settembrini e Naphta são modelos desta confusão reinante entre os homens. Não é à toa que ambos só conseguem “resolver” suas diferenças através do duelo mortal para Naphta. É um equívoco pensar-se que a contrafação dessas idéias umas contra as outras levaria-nos a um lugar comum onde encontraríamos o verdadeiro sentido do humano. Não. É pela noção principial de que ambas partem da soberba do homem em relação a Deus que ambas devem ser recolhidas à sua (in)significância e analisadas desde outro entendimento e significado. Só existe o humano pelo e no Divino. Fora disto, estamos diante da maledicência demoníaca. Não custa lembrar que no paraíso, a serpente seduziu Adão e Eva pela vaidade, colocando-os contra Deus, induzindo-os a acreditar que poderiam ser mais do que Ele. Chamar settembrini de Satã já não é mais um exagero. E com ele, o “mais alguém” Naphta também lhe faz companhia.

São esses os três “grandes” personagens, ao lado dos medíocres. Com eles, Thomas Mann faz o completo mapeamento da sociedade e das idéias e valores em voga naquele período pré-1ª Guerra Mundial. Tudo que ele viu foi degradação e desesperança. Àqueles que tinham por missão acordar os homens de seu sono vaidoso, não estavam mais acordados do que os próprios medíocres. No fundo, todos estavam no lugar certo: na montanha mágica, onde cada qual dava sua medida para ser mais “humano” do que o seu próximo. O sentido da vida estava ausente, a confusão instalada, mesmo nos círculos “racionais”, cuja missão era o guiamento dos homens. Babel se repetia, mas a torre humana já não queria “chegar” a Deus, e sim “curar-se” dele. Lá como cá, o declínio e a dispersão ocorreram. A 1a, Grande Guerra não foi mais do que a consequência inevitável deste estado de coisas, e com ela fecha-se o livro.

IV - Quem Dera Fosse O Fim:

Mas Thomas Mann, no fundo, é um esperançoso. Simbolizou a guerra como a um trovão. O Trovão simboliza o poder de Deus, sua justiça e sua cólera. Pode ele representar a ameaça divina da destruição ou o anúncio de uma revelação. A escolha do símbolo não deixa dúvida acerca da esperança e da fé de Thomas Mann na possibilidade de que se revele aos homens os erros que cometeram. Ainda que em consequência da destruição da guerra. Unem-se assim os significados. O trovão que vem para destruir, mas quem sabe também revelar o verdadeiro sentido do humano. É uma esperança. A esperança de Thomas Man: "será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor ?"

Viramos o século já, mas essa festa universal da morte só fez se inflamar. A febre nunca foi tão presente quanto agora. Já não se pode dizer que existam Settembrinis, Naphtas ou mesmo Peeperkorns. Inclusive essas grandezas ao avesso se mediocrizaram. O mundo, muito mais agora do que antes, é todo dos medíocres. E a montanha nem mesmo é necessária. Instalou-se na planície e o que era passível de se enxergar como “mágico” e “ilusório”, hoje é o que se apresenta como a “realidade”. Nunca o sanatório Berghof teve tantos pacientes como hoje. Infelizmente.

12:41 PM 3 comentários
quinta-feira, maio 26, 2005


por Alfredo Votta

Nesta minha primeira contribuição para o Oito Colunas, motivada pelo convite que me honra muito, eu gostaria de colocar algumas opiniões pessoais que não costumo expressar no meu blog. Desta forma eu escrevo um texto cuja publicação aqui faz sentido, por ter algo de especial, de diferente, em relação ao que escrevo habitualmente no Imperador da Svolonésia.

Assim, escolhi um tema que me agrada muito; vem sendo abordado em vários blogs e sites (inclusive neste) e ao qual nunca fiz em meu blog senão raríssimas e brevíssimas menções: a Igreja Católica e o seu atual Papa, eleito recentemente. Prossegui mesmo sabendo que muitos não se interessam, e mesmo que este assunto já tenha sido muito, muito comentado por bastante gente.

Por coincidência o texto mais recente do André de Oliveira também fala sobre isto, e toca inclusive num assunto que eu gostaria de comentar. Trata-se da parte em que ele diz “Bento XVI admite explicitamente que a verdade não se encontra unicamente no cristianismo”.

Esta visão não se opõe à ortodoxia, a meu ver. A Igreja não se opõe ao que existe de santo e verdadeiro nas outras religiões, para utilizar termos do Concílio Vaticano II, citados na Declaração Dominus Iesus do ano de 2000, assinada pelo então Cardeal Ratzinger e aprovada por João Paulo II. Assim a Igreja afirma que existem coisas santas e verdadeiras nas outras religiões, e que tais coisas não se rejeitam.

A revelação de Jesus Cristo, entretanto, é completa e definitiva. As coisas santas e verdadeiras das outras religiões não são coisas novas, alheias ou complementares à Fé; são lampejos da Verdade.

Não acredito, portanto, ser motivo de apreensão entre os fiéis o fato de os papas recentes andarem se aproximando de outras religiões. É uma aproximação pessoal e de caridade; se João Paulo II beijou o Alcorão, muito bem se observou que nenhum decreto foi emitido obrigando os católicos do mundo inteiro a fazê-lo; tampouco se introduziram doutrinas islâmicas na Igreja. Para ser direto: é necessário confiar no Papa e na sua infalibilidade para assuntos de Fé e Moral.

Além do mais, vejo poucas pessoas mais indicadas do que o próprio Papa para a aproximação caridosa com outras religiões. Se Pedro conduz a Igreja, não é natural que seja ele a ir ao encontro de quem não está nela? Justamente ele, que não falhará, conforme a promessa divina, é que pode se aproximar dos outros; e não eu, que não tenho infalibilidade nenhuma e preciso lutar mil vezes por dia para me manter no caminho correto.

É importante lembrar também que João Paulo II e Bento XVI têm falado duramente contra o relativismo, e não há dificuldade em entender, a partir disso, que não se está igualando a Igreja a religião outra nenhuma.

Da minha parte, eu insisto na confiança no Papa. E é conclusão óbvia da inteligência que confiar no Papa não é compartilhar seus gostos pessoais, mas segui-lo na Fé.

É fundamental tomar cuidado com as pessoas, tomando emprestada a expressão do André, que “se consideram mais católicas que o próprio Papa”. Eu arriscaria dizer que isto é um sinal quase certo de pessoas que não merecem confiança ou ouvidos.

Acredito ainda que vivemos numa época feliz no que se refere às pessoas escolhidas para o trono de São Pedro. Não se esqueça de que o Papa seria o Papa ainda que fosse de pouca inteligência, de fraca liderança, pouco piedoso; entretanto, temos visto pontífices que são de grande inteligência, grandes líderes e muito piedosos. Isto torna mais inspiradora a submissão ao chefe da Igreja, e estou certo de que isto é a vontade de Deus; e a gratidão dos fiéis a Ele deve ser ainda maior, porque isto nem sempre foi verdade, não é a regra.

Traz alegria e felicidade, no caso de Bento XVI, ver uma pessoa modesta, tímida (como ele próprio diz), amante de livros, afeita a recolher-se a bibliotecas, chegar a uma posição tão importante.

O próximo ponto que desejo comentar eu nem precisaria mencionar para muitos leitores; mas a insistência da imprensa é o que me faz não o ignorar. Leio coisas como “Bento XVI terá que dar respostas aos católicos no que se refere a contracepção, casamento homossexual, preservativos” etc., sempre aquela mesma lista.

Em primeiro, acho engraçado uma revista dizer “Bento XVI terá”, como se estivesse passando o dever de casa para ele, colocando obrigações. Nem os fiéis fariam isto (a não ser com muita caridade e humildade, e em situações um tanto extremas), imaginem uma revista laica. Em segundo, as respostas àquelas coisas já estão dadas. A Igreja tem seu posicionamento sobre cada um daqueles itens, e não o mudará.

Poucos dias depois da morte de João Paulo II, vi na CNN (ou na BBC? Já me esqueci) uma jornalista entrevistando um arcebispo (católico) da Inglaterra, se não me engano. Bastante feroz, ela insistia muito com ele em coisas como casamento gay e outras atualidades. Era constrangedor, e uns dias depois eu me lembrei disso ao ler o Alexandre Soares Silva, perguntando: como é que essa gente deixa de lado os santos, os mártires, os mistérios da Santíssima Trindade, e só pensa em casamento gay quando vê o Papa?... O tal arcebispo lhe respondia com serenidade e santa elegância. A Igreja não é um clube com estatuto que se mude á vontade, nem que tome medidas para atrair mais sócios. E é um pouco triste ter que dizer coisas desse tipo, óbvias até não mais poder, porque existe gente demais que não sabe, ou pior: ignora isto de modo consciente e premeditado.

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segunda-feira, maio 23, 2005



por André de Oliveira


Seria muito difícil disfarçar, por isso desisti da tarefa antes de tentar empreendê-la. A verdade é que minha predileção por Bento XVI é notória. Se ainda não é, ficaria evidente neste artigo. Apesar de ter gostado do papado de João Paulo II e considerá-lo como imprescindível para o momento em que vivíamos e em que ainda vivemos, nenhum de seus livros ou encíclicas me empolgaram.

Desde que foi eleito papa, passei a ler vários artigos, ensaios e homilias do ex-cardeal Joseph Ratzinger. Que maravilha! Em meu blog, comentei a respeito da primeira homilia oficial, em que ele começa criticando o poder e não o dinheiro, ao contrário do que vinha fazendo a Igreja até então, e de total acordo com o meu texto A Igreja em Xeque. Num outro momento – não consegui localizar o artigo -, Ratzinger chega a concordar com a visão que expus de Barrabás, a de um reformador político, para o qual o dinheiro representou apenas o impulso final que desencadeou seu ato de traição, mas que teve como fator motivador, durante todo o tempo, a tentativa de mudar o mundo pela via do poder, opondo-se à visão de Jesus Cristo de transformar o coração dos homens.

No ensaio Verdade e Liberdade, o ex-cardeal explica, de uma maneira simples e inteligente, que a liberdade está ligada à responsabilidade e que somente a verdade pode servir de guia tanto para uma quanto para outra.

Eis como considera a visão marxista da liberdade: "o marxismo parte do princípio segundo o qual a liberdade é indivisível, quer dizer, existe como tal somente quando é de todos. A liberdade está unida à igualdade. A existência da liberdade exige, antes de tudo, o estabelecimento da igualdade. Por conseguinte, é necessário renunciar à liberdade com o fim de alcançar a meta da total liberdade. A solidariedade de quem luta pela liberdade de todos é anterior à reivindicação das liberdades individuais. A citação de Marx que serviu de ponto de partida para nossas reflexões nos mostra que a idéia de liberdade sem limites do indivíduo volta a reaparecer no final do processo. Contudo, no presente, a norma é o caráter prioritário da comunidade, a subordinação da liberdade à igualdade e, portanto, a preponderância do direito comunitário em oposição ao indivíduo. Está ligada a esta noção a suposição de que a liberdade do indivíduo depende da estrutura da totalidade e que a luta pela liberdade não deve ser travada para assegurar os direitos do indivíduo mas para modificar a estrutura do mundo."

Como é fácil perceber, é a mesma idéia de Barrabás, apenas um pouco mais sofisticada: usar o poder para estabelecer uma igualdade que criaria um homem novo, o qual seria livre porque não se relacionaria com os demais como o homem antigo, para os quais a realidade fazia com que a liberdade de um limitasse a liberdade do outro.

Por incrível que pareça, a idéia de liberdade do iluminismo não é muito diferente. Para este, a liberdade não está ligada à responsabilidade nem à verdade, até porque considera a verdade relativa, opondo-se, quando considerada absoluta, à liberdade. Sobre isto, o atual papa Bento XVI comenta: "na nova sociedade, as dependências que restringem o eu e a necessidade de altruísmo não teriam direito a seguir existindo. Sereis como deuses. É possível visualizar com bastante claridade esta promessa detrás da radical exigência de liberdade da modernidade. (...) O desejo de ser totalmente livre, sem a liberdade competitiva de outros, sem um a partir de nem um para não pressupõe uma imagem de Deus, mas de um ídolo. O erro fundamental de semelhante desejo radical de liberdade reside na idéia de uma divindade concebida como puro egoísmo. O deus concebido desta maneira não é um Deus, mas um ídolo. Certamente é o que a tradição cristã chamará de demônio, o anti-Deus, porque contém exatamente a antítese radical do verdadeiro Deus. O verdadeiro Deus é, por sua própria natureza, um ser-para (Padre), um ser a partir de (Filho) e um ser-com (Espírito-Santo). O homem, por sua vez, é precisamente a imagem de Deus na medida em que o a partir de, o com e o para constituem o padrão antropológico fundamental. Cada tentativa de fugir deste padrão não é um caminho para a divindade, mas para a desumanização, para a destruição do próprio ser mediante a destruição da verdade." E cita exemplos atualíssimos: "a liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas paródia demoníaca."

Mas o que mais me impressionou em todo o ensaio foi o fato do autor ter enfatizado em vários momentos onde se encontra a fonte da verdade: "a razão deve escutar as grandes tradições religiosas se não quiser ser surda, muda e cega precisamente perante o essencial da existência humana." E nesse outro trecho: "quando a verdade deixa de visualizar-se no contexto da apropriação inteligente das grandes tradições da fé, substitui-se pelo consenso."

Ao contrário da moda atual de vários blogs católicos e ortodoxos, o atual papa Bento XVI admite explicitamente que a verdade não se encontra unicamente no cristianismo, mas nas grandes tradições da fé. É claro que ele não considera o cristianismo uma religião como as outras, porque foi fundada pelo próprio Filho de Deus, mas consegue entender que é preciso conservar as outras tradições e protegê-las das deturpações políticas das quais também o cristianismo é vítima. É preciso frisar este ponto porque muitos que se consideram mais católicos que o próprio Bento XVI não compreendem este posicionamento e acabam por fechar os olhos a tudo que não sai diretamente do centro do cristianismo. Serei enfático e insistente: ouçam Bento XVI e abram a razão para as grandes tradições da fé.

quinta-feira, maio 19, 2005



por Diogo Costa


Liberais dizem que “a direita quer ser seu papai e a esquerda quer ser sua mamãe, o liberalismo quer que você assuma a responsabilidade de um adulto”. Concordo. Os conservadores tentam moralizar a sociedade dizendo o que cada um pode e não pode fazer com a própria vida. E os progressistas insistem em proteger os filhinhos das incertezas do mundo. Ambos comungam da completa falta de fé que os indivíduos consigam, sozinhos, acertar as escolhas para a própria vida.

Só que diferente da família, que age por amor, os pais governamentais, por mais bonzinhos que pareçam, definem-se por aplicar coerção legal com o propósito de satisfazer objetivos coletivos. Cada grau de expansão de seu poder corresponde a um aumento proporcional da dependência da sociedade. Os liberais não acreditam nessa expansão compulsória e advogam que os indivíduos sejam emancipados, respondendo pelos seus atos como adultos.

Os estatistas, tanto de direita como de esquerda, também querem emancipar os indivíduos. Não do Estado, mas da sociedade civil. Pretendem substituir as relações voluntárias que emergem naturalmente por imposições artificiais. A competição do mercado pelo jogo de interesse dos lobistas, os investimentos pessoais pela previdência social, a cooperação pelos programas assistencialistas, a responsabilidade individual pela servidão coletivista. E criam toneladas legislativas.

Essa dependência paternal dos indivíduos pelo Estado não consegue atingir nem mesmo as metas originais do Estado. A moralização conservadora falha porque tenta impor valores que apenas seriam legítimos caso as pessoas os aceitassem voluntariamente. E o assistencialismo progressista não faz muito além de atrofiar a economia e impedir a ascensão social.

Além de fracassar nos objetivos tentados, a expansão política ainda produz outros resultados indesejáveis. Para evitá-los, antes de sair expelindo leis por todos os poros, o legislador deveria compreender o funcionamento da realidade. Se os físicos tivessem o mesmo ímpeto e animação dos políticos, teríamos tantas fórmulas inúteis quanto temos leis.

Assim como uma teoria científica, a legislação deve estar de acordo com as leis da natureza. É necessário identificar a intenção divina na natureza se quisermos criar um ordenamento jurídico justo e benéfico. A criação possui suas próprias normas que, quando constatadas, permitem ao homem a viver da forma que escolhe.

O escritor americano David Frum explica em “Dead Right” que aprendemos a agir conforme a restrições naturais: a limitação dos nossos recursos, a observância religiosa, as tradições comunitárias e os riscos de doenças e desastres. E diz que a expansão do Estado, privando os indivíduos de sofrerem os efeitos de sua irresponsabilidade, serve para impedir que a sociedade seja recompensada pelo comportamento virtuoso.

A natureza ensinou Robinson Crusoe a ser disciplinado, esforçado e prudente se quisesse sobreviver e progredir. São qualidades valiosas para o desenvolvimento de uma sociedade. O homem observa a realidade e com ela aprende como deve se comportar para satisfazer suas vontades. Aprende que precisa ser trabalhador se quiser descansar, estudioso se quiser aprender, frugal se quiser enriquecer, honesto se quiser a confiança e o respeito de seus próximos. A ordem criada por Deus recompensa aquele que age virtuosamente e pune o hábito vicioso. Assim, a formação do caráter depende do bom entendimento da ordem natural, o que não ocorre quando se substitui a ordem natural divina pelas ordens arbitrárias do governo.

O marxismo é um ideal exemplo de inversão da ordem natural, por tentar anular o interesse individual humano através da coerção estatal. Mas não precisamos nos aproximar do radicalismo comunista para identificar as distorções causadas pela inobservância da política às leis naturais e sua constante interferência na ordem espontânea característica da sociedade civil. David Frum exemplifica:

“Por que ser frugal quando os cuidados da sua velhice e saúde são providenciados, não importa o quão prodigamente você agiu na sua juventude? Por que ser prudente quando o Estado assegura seus depósitos bancários, substitui sua casa inundada, compra todo o trigo que você conseguir plantar e lhe resgata quando você vagueia numa zona de combate estrangeira? Por que ser diligente quando tomam metade do que você ganha para dar aos desocupados? Por que ser sóbrio quando os contribuintes sustentam clínicas para curar seu vício quando a droga não lhe diverte mais?”

A acumulação de virtudes necessárias para o avanço social, como a parcimônia, a honra, a cooperação, a educação, a honestidade e a prudência, torna-se desnecessária quando as recompensas criadas por Deus são substituídas por arranjos artificiais do Estado. Se o governo altera as conseqüências da ação virtuosa, a recompensa não vai para o homem que se preocupa com a formação de seu caráter, mas para aquele que se envolve nos esquemas políticos de seu interesse.

A história mostra que, quando livres, somos ensinados pelos estímulos da ordem natural. Como resultado, a humanidade tornou-se rica e digna. Mas essa mestra sempre esteve duelada pela rebeldia juvenil que acreditava ser mais sábia que a natureza e imune à realidade. Quando os indivíduos são emancipados da responsabilidade de suas ações, permitimos que a sociedade se torne cada vez mais dependente, covarde, deseducada e perdulária. Tornamo-nos crianças sem a desculpa da inocência.

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domingo, maio 15, 2005


por Octavio Motta


Existe uma distorção acerca da natureza do ceticismo, que a da dúvida, não da afirmação negativa. Descrença, não de crença em algo. Parece claro, mas fica confuso. Céticos não podem negar algo sem ter provas. Por exemplo, você pode duvidar a hippie do 303 raspe as pernas sempre escondidas por saias compridas. Mas, salvo levantar as saias para fazer uma, digamos, verificação direta, isso é mera suposição da sua parte. O mesmo vale para quem quiser provar que a moça raspe as pernas. Que prove.

Quando diante de questões metafísicas, a única posição cética é o agnosticismo. Em outras palavras, não sabe, não conhece. Nem acredita nem deixa de acreditar. Ou qualquer coisa, praticamente. Ceticismo não é propriamente posicionamento absoluto, mas uma posição que a maioria tem em maior ou menor grau em relação a diversos assuntos. Portanto pessoas com diversas crenças e idéias podem ser cético de inúmeras maneiras.

Claro que todo mundo quer puxar a sardinha para o próprio lado. Então, um grupo resolve se outorgar o monopólio do pensamento crítico. Só quem subscreve sem questionamento as regras faz parte da turma. A aderência sem questionamentos a um rígido sistema de crenças é pré-requisito para se qualificar como pensador crítico.

Pode-se notar facilmente esse tipo de comportamento, que em geral produz espasmos como esse, enquanto escorre baba pelo canto da boca: “É publico e notório que desde sempre todos sabem com absoluta certeza que todos os religiosos sempre são intolerantes que apelam para autoridade do que outros escreveram, e este fato foi escrito em vários livros.”

Então você chega, educadamente, aponta alguns erros de lógica. Logo vem a resposta: “Isso é ignorância de quem não tem pensamento crítico, pessoas como você sempre inventam histórias e fazem afirmações sem provas, vocês são todos iguais e sempre generalizam!”.

Então, fica assim. Essas palavras se tornam elogios, sinais de virtude, mas só podem ser aplicadas quem pensa de uma maneira pré-determinada. Em maior ou menor grau, assim também age muita gente que diz ter mente aberta. Quem pensa de modo diferente, tem mente fechada.

Nem todo mundo que incorre neste erro, obviamente, o faz de maneira grosseira. Mas freqüentemente jogam coisa que é filosófica, dogmática e não-científica como se ciência o fosse.

terça-feira, maio 03, 2005

por Adalberto de Queiroz


Se eu te conhecesse, prezado leitor , poderia dizer-te em alto e bom som: desculpe-me pela ausência, mas como não sei quem és, devo trabalhar como num diálogo interior e escrever aqui o que me vai no íntimo, como se estivesse pensando em voz alta. E se a alguém servir essas linhas para aplainar o caminho, estaria completo o propósito dessa croniqueta.

Se me perguntasse o porquê do meu silêncio, não saberia responder senão com uma palavra: aridez. Quando nos sentimos em momentos de aridez, temos a tendência de achar que Deus nos abandonou. Se você já passou por isso, provou tal desconforto?

É certo que não me senti sozinho nessa estação espiritual que, por vezes nos assalta, como viajantes em plena caminhada, justo quando pensamos ter feito os maiores avanços. Há o afeto da amizade e das famílias espiritual e biológica que não deixam sós. Há a leitura e a meditação que torna menos dolorosa a experiência. E foi na leitura que encontrei, nesse período, o místico poeta espanhol San Juan de la Cruz, resume em versos este estado de espírito:


“Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste,
havendo-me machucado.
Saí, por ti chamando, e já
tinhas te ausentado" (1)

E na explicação do poema, dada pelo próprio poeta, entendemos que: "se a alma sentir grande comunicação, ou sentimento, ou notícia espiritual, não é isso razão para persuardir-se de que aquela experiência consiste em possuir ou contemplar a Deus, clara e essencialmente; ou para crer que recebe mais de Deus, ou está mais unida a Ele, por mais fortes que sejam tais experiências.

"Do mesmo modo, não há de pensar que Deus lhe falta, em faltando todas essas comunicações espirituais sensíveis, permanecendo ela na secura, treva e desamparo mais do que na consolação”.


A imagem usada pelos que descrevem esse estado de espírito ganha sentido quando o poeta expande a secura para a treva e o desamparo. Sujeito a esse estado o homem sente como se lhe faltasse água ou luz, como a um filho a quem faltou o pai, ou como à esposa a quem faltou o amado. Daí, a sensação de abandono de desamparo e de desolação, para a qual a advertência explícita do poeta-místico é de enorme validez: “não há de pensar que Deus lhe falta...”

Continuamente deve o que está se sentido seco, buscar água, no que tratará de exercer o “amar a si mesmo” como de questão de sobrevivência. E assim a Oração tem para o sedento um papel insubstituível. Alceu Amoroso Lima elaborou há 50 anos, nas “Dimensões da vida interior” a definição para meditação:

“Meditar é aprofundar, pela análise e pela síntese, pela observação e pela comparação, pela aplicação da inteligência e também pela descida ao subconsciente, pelo isolamento e pelo silêncio, pela marcha ou pela imobilidade. Meditar é entrar em si. É deixar que o trabalho misterioso da Graça, em nós, se faça por si, como que independente de nossa vontade e de nossa atenção...Eis porque a meditação exige certas condições exteriores, de silêncio e imobilidade... e certas condições interiores de paz e de despreocupação. (2)

No silêncio se desenvolve com mais fluidez a meditação, porque ao calar ouvimos a voz interior, em busca do oculto no que se leu, no que se vive. Segundo Hugo de São Vítor, a meditação baseia-se no pensamento, sendo:

"um assíduo e sagaz reconduzir do pensamento,

esforçando-se para explicar algo obscuro,

ou procurando penetrar

no que ainda nos é oculto". (3)

Hugo de São Vítor, citado em “A Educação Segundo a Filosofia Perene”(III-12) afirma que há três operações básicas da alma racional, as quais constituem entre si uma hierarquia, e que devem, portanto, ser desenvolvidas uma em seqüência à outra. A primeira ele denomina de pensamento. A segunda, de meditação; a terceira, de contemplação.

O pressuposto de tudo nesse mundo conturbado parece ser mesmo o silêncio, uma das chaves para entrar no castelo interior pela oração. O silêncio prepara o caminho possível que nos leve de volta à Fonte capaz de nos dessedentar. É sábia a conclusão de Josef Pieper sobre o viver em silêncio: “o que se ganha nesse Silêncio profundo é talvez a investidura, a autorização para usar a palavra (...), mas pode acontecer também que o homem que se abre à verdade até o fundo de sua alma perca a palavra...”

Uma dileta amiga cristã encontrou em suas leituras a melhor definição: meditar é como “voltar para casa". Citando Eclesiastes 3:11: "...Também Deus pôs a eternidade no coração do homem sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim", ela prossegue: “o ser humano tem saudades dessa eternidade que Deus pôs em seu coração; o ser humano, por mais ímpio que seja, por mais materialista que se afirme, é uma criatura espiritual, quer o reconheça conscientemente, quer o negue. Mas o seu interior, feito por Deus , sabe: existe um Céu, um 'mundo' diverso deste que nós vemos, e Deus colocou a 'sensação' disto em cada ser humano...Todo ser humano anela por essa eternidade - esse 'algo mais' que muitos, querendo ser modernos e cínicos e sofisticados, negam com os lábios que exista...”

Devo concordar com minha amiga que um dos propósitos do silêncio interior que pode nos conduzir à meditação é “nos levar, ainda que por breves períodos, a essa eternidade que em nós habita. Nos fazer 'retornar' a ela, porque é à ela que pertencemos em verdade - nossa verdadeira casa... o lar do nosso espírito”.

Nesse sentido e de forma conclusiva, a carta apostólica sobre a meditação cristã, da Congregação para a Doutrina da Fé, datada de 1989, continua atual quando afirma que “a oração é dom de Deus” e requer “a mobilização das faculdades do homem, o silêncio, o recolhimento, a leitura dos livros sagrados...”. E assim procedendo, como filho na presença do Pai (ou como a esposa diante de seu Amado), o(a) caminhante poderá alegrar-se com a conquista de maravilhas, e estará no caminho de volta pra casa do Pai.

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*Fontes:
(1) "Doze místicos cristãos: experiência de Fé e Oração", J.M. Velasco, p.147/8, Ed.Vozes.

(2) “Meditação sobre o Mundo Interior”, Alceu Amoroso Lima, Agir, 1955, p.129.

(3) “A Educação Segundo a Filosofia Perene” (s/autor), Edição de Cristianismo.org.br.

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