segunda-feira, junho 27, 2005

Livros citados pelos colunistas deste blog que responderam ao questionário literário que anda circulando pela internet* :

O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
A Montanha Mágica, de Thomas Mann
A Obra em Negro, de Marguerite Yourcenar
O Castelo, de Franz Kafka
O Coração das Trevas, de Joseph Conrad
Crônica da Casa Assassinada, de Lúcio Cardoso
História da Filosofia, de Julián Marias
O Homem Perante o Infinito, de Mario Ferreira dos Santos
O Século do Nada, de Gustavo Corção
Diário de um Pároco de Aldeia, de George Bernanos
Os Diálogos, de Platão, traduzidos pelo Carlos Alberto Nunes
A Vida dos Doze Césares, de Suetônio
As Idéias e as Formas, de José Guilherme Merquior
A Vida Privada e outras histórias, de Henry James
Vida Independente, do jornalista português João Pereira Coutinho
A Bíblia do Caos, de Millôr Fernandes
A Divina Comédia, de Dante Alighieri
Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes
Doktor Faustus, de Thomas Mann
Confissões, de Santo Agostinho
Sobre o Sermão do Senhor na Montanha, de Santo Agostinho
O Processo Maurizius, de Jakob Wasserman
Etzel Andergast, de Jakob Wasserman
A Terceira Existência de José Kerkhoven, de Jakob Wasserman
Rei Lear, de Shakespeare
O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil
Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno, de Simone Goyard-Fabre
Os Fundamentos da Ordem Jurídica, de Simone Goyard-Fabre
Correio Sul, de Exupéry
Vôo Noturno, de Exupéry
Terra dos Homens, de Exupéry
O Planeta do Sr. Sammler, de Saul Bellow
Serpente, de Rex Stout
Sange Sábio, de Flannery O'Connor
É Díficil Encontrar um Homem Bom, de Flannery O'Connor
Lobo da Estepe, de Herman Hesse
Debaixo das Rodas, de Herman Hesse
O Jogo das Contas de Vidro, de Herman Hesse
Dios Y La Divinidad, de Paul Diel
O Simbolismo na Mitologia Grega, de Paul Diel
As Cartas do Inferno, de C. S. Lewis
O Legado de Humboldt, de Saul Bellow
Lições Preliminares do Direito, de Miguel Reale
Código dos Códigos, de Northrop Frye
Anatomia da Crítica, de Northop Frye
Psicologia Integral, Ken Wilber
Cinco Lecciones de Filosofia, de Xavier Zubiri
Astros e Símbolos, de Olavo de Carvalho
Robinson Crusoé, de Daniel Dafoe
A Prática do Amor a Jesus Cristo, de Santo Afonso de Ligório
Crime e Castigo, de Dostoievski
Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski
O Idiota, de Dostoievski
Os Demônios, de Dostoiévski
Pensar na Idade Média, de Alain de Libera
O Homem que foi Quinta-Feira, de Chesterton
El Amor o la Força del Sino, de G. K. Chesterton
Doze Tipos, de G. K. Chesterton,
Sabedoria Tradicional e Supertições Modernas, de Martin Lings
A Arte Sagrada de Shakespeare, de Martin Lings
A Educação Segundo a Filosofia Perene, organizado pelo prof. Donato, do grupo Pró-Vida
A Vida Intelectual, de Sertillanges
A Inquisição em Seu Mundo, de João Bernadino Gonzaga
A Idéia da Fenomenologia, de Husserl
Deus e a Filosofia, de Étienne Gilson
Que é Filosofia?, de Ortega y Gasset
Escolha e Sobrevivência, de Ângelo Monteiro
A Igreja e o Novo Mundo, de Alceu Amoroso Lima
As Cidades da Idade Média, de Henri Pirenne
Tempos Modernos, de Paul Johnson
A Nova Riqueza das Nações, de Guy Sorman
A Consciência Conservadora no Brasil, de Paulo Mercadante
O Espírito das Revoluções, de J.O. de Meira Penna
Opção Preferencial Pela Riqueza, de J. O. Meira Penna
Em Berço Esplêndido, de J. O. Meira Penna
Um Espectador Engajado, de Raymond Aron
Gramáticas da Criação, de George Steiner
Luz Sobre a Idade Média, de Régine Pernoud
O Espírito do Capitalismo Democrático, de Michael Novak
História da Filosofia Moderna, de Sofia Vanni Rovghi
A Demanda do Santo Graal, de Fabio Ulanin
Impressões e Provas, de John Dunning
Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift
Os Irmãos Corsos, de Alexandre Dumas
O Corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo
Sob o Signo de Jonas, de Thomas Merton
Sallambô, de Flaubert
Trois Contes, de Flaubert
Prosa do Observatório, de Júlio Cortazar
Introdução Geral à Filosofia, de Jacques Maritain
A Igreja de Cristo , de Jacques Maritain
Da Graça e da Humanidade de Jesus, de Jacques Maritain
Caminhos para Deus, de Jacques Maritain
As Grandes Amizades, de Raissa Maritain
S. Bernardo de Claraval, de Albe J. Luddy
Inteligência e Pecado em S. Tomás de Aquino, de Celestino Pires
Auto de Fé, de Canetti
A Rebelião das Massas, de Ortega y Gasset
Dom casmurro, de Machado de Assis
Brás Cubas, de Machado de Assis
A Coleção Particular, de Perec
Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, de Mário de Carvalho
A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, de Mário de Carvalho
Era Bom que Trocássemos umas Idéias sobre o Assunto, de Mário de Carvalho
Os Três Últimos Dias de Fernando Pessoa, de Antonio Tabucchi
Réquiem, de Antonio Tabucchi
Sonhos dos sonhos, de Antonio Tabucchi
Hídrias, de Dora Ferreira da Silva
Sermões, do Padre Antônio Vieira
A Bíblia Sagrada
* Faltam os livros citados por Alfredo Votta, que estarão completando a lista em breve.

quarta-feira, junho 22, 2005



por Mauricio Amaral



“Tendo chegado rapidamente ao termo, percorreu uma longa carreira. Sua alma era agradável ao Senhor, e é por isso que ele o retirou depressa do meio da perversidade”.
Livro da Sabedoria 4, 13-14.


Às vezes, é assim que acontece: a onda imensa e devastadora vem em forma de fato banal, como um acidente de carro. Não obstante, o seu rastro é o mesmo da tsunami: desolação, dor e perplexidade. As vidas que ficam perdem parte preciosa da sua substância, algo que lhes modifica a órbita natural.

Luciano possuía qualidades que o tornavam uma pessoa singular. Não há ninguém mais que saiba de cabeça todas as placas de carro dos parentes, amigos e ainda muitas outras de meros conhecidos. Também não é comum encontrar quem saiba calcular os dígitos de controle dos números de CPF. Nem tampouco quem tenha um olfato tão desenvolvido, capaz de identificar, às cegas, quase todos os perfumes existentes em uma importadora qualquer. Não há notícia de pessoa que fosse tão amada, unanimemente. No dizer carinhoso de um amigo, que não cansava de repetir apertando-lhe as bochechas, era o nosso “brigadeiro”, presente em todas as festas.

Embora muito peculiares, entretanto, estas características não eram o fator mais importante na sua distinção de outras tantas pessoas especiais. Havia algo mais grandioso a envolvê-lo, um mistério que ainda hoje permanece selado. Sobre isto, a feliz definição partiu de outro amigo: “ele tinha tempo para todo mundo”.

Como fosse querido, popular e solicitado, possuía vários núcleos de amizade. Cada um com suas preferências e programas específicos: jogar bola, malhar, jantar, viajar, comer caranguejo, ir à praia, festas, carnaval. Como ponto de interseção, ele fazia o absurdo: estava em todos. Não dispensava encontro, nem frustrava ninguém. No máximo, precisava arrumar uma desculpa para eventual atraso, coisa que fazia com um sorriso capaz de destruir qualquer aborrecimento decorrente da sua demora, por maior que tivesse sido ela.

Essa centelha de ubiqüidade, Luciano partiu sem explicar nem dividir. Até porque, mesmo arrastado pela onda, certamente, fez questão de devolvê-la intacta Àquele de quem a recebeu: o Pai Eterno, cuja face ele já há de contemplar.

domingo, junho 19, 2005



por Adalberto de Queiroz



Fecho os Sermões de Vieira e abro o jornal diário. Melhor que não o fizesse. É uma troca imposta pelas manchetes da imprensa, um impositivo da realidade diária, pois que nos cobram atualidade nas conversas entre amigos, colegas de trabalho e parentes - esquecidos que somos todos do passado recente. É preciso, pois, que a crônica do cotidiano defina o tom dessas conversas mas não se esqueça do grande rio da história contínuo e caudaloso, que vai arrastando a todos os atores de primeira ou de segunda grandeza.

O cronista vê o caso dessas duas cartas que o diário exibe em manchete, após a queda do ministro José Dirceu, como o terreno próprio para que se exerça uma análise imparcial e se compare o episódio com o que deveria ser o comportamento esperado de personagens que fundaram seu discurso político sobre a sagrada palavra ‘esperança’, naturalmente, sem mostrarem entendimento sobre a verdadeira Esperança. O homem que cai é ‘peixe grande’ comenta um amigo. É o ex-guerrilheiro feito primeiro-ministro que fala ao operário feito presidente – movidos ambos pelo desejo de responder às acusações de corrupção que invadem o parlamento e as conversas diárias de toda a gente. O presidente aceita a demissão do ministro também em carta pública. Ambas as cartas viram de pronto material de mídia desde a origem, como se fossem escritas para ser publicadas, como num texto de ópera bufa, peças a conduzir a comunicação de toda a mídia, ansiosa por informação pronta, portátil, mastigada para um público ávido de informação que não exija nterpretação.

Não é sem razão que pensamos no nome do movimento em que os personagens dessa ópera bufa conduziram em toda a vida político-partidária: articulação. Para o leitor atento tudo está articulado para funcionar como uma grande máquina de marketing, em que se contrói e se descontrói. Lendo as cartas, os leitores encontrarão, aliás, a referência explícita à “tentativa de desconstruir a nossa história”, em que o autor da carta posa de vítima – como se estivéssemos diante de uma tese de marketing (demarketing ou unselling) e não de uma questão ética.

Mostra a prática republicana que estes que agora têm a responsabilidade de dirigir nunca estiveram tão desarticulados, em relação a uma série de questões de gestão do estado. Eis que tentam promover uma saída articulada do ministro todo-poderoso (plenipotenciário) em meio às enormes atribulações causadas pelas acusações de corrupção envolvendo “peixes grandes”, tão poderosos na República.

E onde estão os que deveriam imprecar contra os vícios e exaltar as virtudes?

Padre Vieira em seu sermão aos Peixes, cansado de tentar falar aos homens, dirige-se aos peixes, com o desconsolo de saber que “gente pode ser peixe que se não há de converter”. O cronista indeciso sobre o que dizer diante da ópera midiática, recorre ao pregador, desolado com a ausência de profetas na mesma terra em que pregava Vieira:

“Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa da corrupção? Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!”

Permitindo-nos comparar os homens aos peixes, ressaltando que estes são melhores ouvintes, Vieira primeiro exalta suas virtudes, para depois açoitar-nos os vícios, quando deita-lhes repreensão, como deveria este cronista sem inspiração pessoal repetir a seus parcos leitores: “grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior” e citando Santo Agostinho, repetir com Vieira: “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros”. Ou, ainda numa metáfora zoólogica poderia concluir com o pregador: ‘são piores os homens que os corvos’. Eis a carnificina que a realidade impõe ao cronista, diante do espetáculo dos atores políticos diante das câmeras de TV.

Como espectador dos atos encenados e a encenar, eis a conclusão: os corvos estão de novo soltos em nossa terra, digladiando por moedas de prata supostamente situadas em bocas de peixes pequenos, médios e grandes. A República se pergunta se alguém morrerá com o “alheio atravessado na garganta” como na história do peixe que São Pedro pesca com a moeda de prata presa à garganta.

Lembremos de Padre Antonio Vieira:

“Mandou Cristo a São Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe, e que seja ele o que morra primeiro que os demais?”.

Estais atentos, diz o pregador, “os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares...”

Felizes são os peixes, chega aos ouvidos do cronista, emulando a mais funda infância de sua filhinha, que lendo essas linhas mal costuradas, imagina o cronista como lançando as mesmas redes que o pescador inepto tentasse lançar ao mar de conhecimento em que navega. Infelizes são os homens, deveria essas linhas conter, posto que fundadas no mais exato sentimento de revolta e asco diante da realidade de seu país. Sim, revolta, asco que se unem ao sentimento de decepção e juntos dão a tônica dos dias atuais diante dos brasileiros que se dispõem à leitura do jornal diário... Melhor seria voltar ao velho e sábio Vieira e renunciar à articulação de tão perniciosa realidade.

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quarta-feira, junho 15, 2005


por Gustavo Nogy

O cardápio de ditaduras politicamente corretas anda tão perigosamente variado que ainda hei de preferir, cedo ou tarde, a boa e velha ditadura do proletariado. Saudosismo de quando o mundo estava inexoravelmente dividido entre barbudos e não-barbudos, e isso era bom. Agora, as patrulhas são outras: menos identificáveis, mais sedutoras.
Dizem: há o grandíssimo problema do meio-ambiente e há seus paladinos. O mundo caminha a passos largos para a implosão: demográfica, ambiental, econômica, e, segundo novíssima cartilha, moral. Vejamos. Havendo explosão demográfica, deve haver controle demográfico. Aqui se começa a justificar a existência de movimentos abortistas, a urgência de controle estatal de natalidade, e, por fim, a eutanásia dos considerados inválidos de acordo com tais ou quais prescrições. Em convergência com a necessidade de se despovoar o planeta, militantes gays preconizam o sexo livre, livre inclusive da possibilidade de procriação.
Curiosamente, juntam-se gays, feministas pró-aborto, especialistas em saúde pública e ambientalistas em nome, respectivamente, de valores cívicos louváveis como a irrelevância de se gerar bebês, a absoluta necessidade de se matar os bebês acidentalmente gerados, a pertinência de se preparar morte rápida e indolor àqueles que eventualmente venham a produzir incômodo para seus familiares e para o Estado e a proteção inalienável de um planeta e seus ilustres habitantes, descontados os humanos.
Interesses coincidentes. O que nos resta: em lugar de religião, culto à Gaya. Em detrimento do consumo, ascetismo dietético. Onde havia proteção à vida, aborto e "boa morte". Onde espontaneidade, controle estatal. Antes moralidade, agora cidadania. Sempre suspeitei daqueles aulas de educação moral e cívica.

sábado, junho 11, 2005



por Fabio Ulanin


A reflexão a respeito de Santo Agostinho e suas Confissões exige não apenas um olhar puramente literário. O autor, fundador da visão medieval cristã, ao resgatar de Platão e de Plotino os conceitos filosóficos, faz, em sua autobriografia, mais do que a literatura: desenvolve todo um raciocínio de caráter metafísico que imprime em sua reflexão sobre o passado uma série de conceitos fundamentais para a efetiva compreensão de seu discurso. Não pretendemos, contudo, esmiuçar estes conceitos filosóficos, o que escaparia dos moldes de um texto breve como este que hora se apresenta. Pretendemos, apenas, refletir de modo simples, a respeito de alguns poucos conceitos do Bispo de Hipona para, a seguir, compreender melhor o que vem a ser, afinal, a sua autobiografia. Para tanto, utilizar-nos-emos não só de suas Confissões, mas de outros textos que, apesar de não apresentarem o caráter biográfico explícito (visto que sempre há algo do autor, alguma referência pessoal, ainda que não compreendida de imediato pelo leitor, na produção de uma obra), irão fornecer dados fundamentais para a compreensão de nosso texto-base; neste sentido, buscaremos n’A Cidade de Deus o conceito de tempo utilizado pelo Santo, assim como em outras obras de referência que possam nos oferecer dados para a compreensão do Tempo e da Memória.

O conceito de tempo se caracteriza por um processo que abandona o aspecto de continuidade ou mensurabilidade e relaciona-se a um outro conceito: o de simultaneidade, pois são dois os tempos que existem e interagem de forma absoluta, na visão cristã medieval, da qual Santo Agostinho é o inaugurador — o tempo dos homens, certamente medido pela hora canônica (o tempo dos mosteiros, que regrava e regia o labor humano), e o tempo de Deus, revelado por sua permanência e sua constância na consciência. O primeiro depende absolutamente do segundo; e o inverso não é verdadeiro. Como afirma Schuback:
“A expressão ‘tempo de todos os tempos’ quer indicar, de imediato, que a metafísica cristã da criação assume duas dimensões no tempo: um tempo no singular, único e inteiro e um tempo plural, múltiplo e diverso. O tempo singular, único, inteiro é a eternidade do Deus criador. O tempo plural, múltiplo e diverso é o tempo de toda realidade extradivina, de todas as criaturas.”[1]

Isto se dá pelo fato de que, sendo o homem fruto de uma ação criadora, ele traz em si todo um passado que determina suas ações; em outras palavras, há uma memória do princípio dos tempos, no qual Deus gera as coisas do nada, e que se projeta para o presente, afinal o homem só pode criar e produzir graças à sua condição de criatura. E, do mesmo modo, todas as suas ânsias e angústias em relação ao futuro são presentificadas – afinal o que acontecerá pode ser mistério para o homem, mas não o é para a suprema consciência divina. Isto se dá no que se refere à História – o que dizer no tocante à propria vida do homem? Em certa medida, o ser humano partilha com Deus esta essência tempora – a mem´ria, assim, é o intrumento capaz de levar o homem a reviver o seu passado, presentificando-o, ou a projetar o seu futuro, antecipando-o. Aliás, este mesmo conceito é percebido no Velho Testamento, seja nos livros históricos (I e II Reis, p.ex.) seja naqueles de caráter profético (Isaías, Oséias etc.).

Em Deus não há tempo: Ele é o próprio Tempo em sua eternidade, assim como é a própria Bondade, o próprio Amor, a própria Justiça. Ou, como afirma Tomás de Aquino[2], todos estes caracteres acima elencados não são atributos de Deus, mas a sua própria Essência e, enquanto aspectos essenciais do Criador, fazem parte de uma Verdade superior e suprema ressaltadas pela consciência absoluta que Ele possui. Desta forma, o tempo divino é um encontro radical de todo o tempo em um único momento – paradoxo aparente que ocorre em nossa consciência humana, marcada que está pela seqüencialidade. É, enfim, um eterno presente marcado por Sua consciência – o que significa que é, para nós, um mistério.

Este duplo aspecto temporal é claramente ressaltado por Santo Agostinho, ao demonstrar a existência simultânea das duas cidades – a terrestre e a celestial, o tempo linear e o tempo eterno – e, também, no momento em que ele explicita a importância da memória:

“Dessa riqueza de idéias me vem a possibilidade de confrontar muitas outras realidades, quer experimentadas pessoalmente, quer aceitas pelo testemunho de outros; posso ligá-las aos conceitos do passado, deles inferindo ações, fatos e esperanças para o futuro, e, sempre pensando em todas como estando presentes, ‘farei isto ou aquilo’, digo de mim para mim no imenso interior de minha alma repleto de tantas imagens [...] Assim falo comigo mesmo e, enquanto falo, eis que se tornam presentes, retiradas do tesouro da memória, imagens de tudo o que nomeei.”[3]

O que diz o Santo de Hipona é bastante claro: tornamos presentes, pela memória, toda a nossa experiência passada, assim como todo o nosso desejo em relação ao futuro (junto com todas as possibilidades de sua realização). Mas, parece, este raciocínio encontra-se com um outro aspecto que não é só o de uma psicologia meramente humana – é a própria História que está aí incluída, na medida em que, para o pensamento cristão, a vinda de Cristo é a realização de diversas profecias do período vetero-testamentário e da qual todo o futuro também deriva. Nesta medida, a interpretação do texto bíblico encontra lugar no conceito de tempo agostiniano, não mais pela memória individual, mas por uma memória coletiva presente, já, nos desígnios de Deus. O que significa que, na antigüidade hebréia, os profetas previam, para o futuro, a redenção de toda a humanidade por meio daquele que seria considerado o Cristo; e, igualmente, para os homens do período neotestamentário, aquelas profecias passadas, traziam em si uma verdade que acabara de ser revelada. Em outras palavras: o anúncio antigo projetaria, já para os profetas, a sua salvação (e por esta razão há a idéia de que Cristo desce aos Infernos para libertá-los) e, para os contemporâneos do Salvador, uma memória que reforça e justifica o seu caráter messiânico. Mas a projeção do futuro no presente não se encerra aqui: há uma nova profecia no texto bíblico, que marca agudamente a mentalidade do homem medieval – a Segunda Vinda do Apocalipse de João que também presentifica os horrores do fim dos tempos (humanos, notemos bem) assim como a redenção dos justos. É o tempo divino marcando intensamente o tempo humano, afinal “o tempo sucessivo e linear não pode medir a eternidade”[4].

Deste modo, compreende-se melhor a estrutura de memória que encontramos n’As Confissões. Santo Agostinho pretende relatar a sua história, desde a infância até aos 15 anos (I Livro), passando pelos dramas da adolescência dos 16 anos (II Livro), seu tempo de estudante, quando se envolve com o maniqueísmo e os prazeres do teatro e dos jogos circenses (III Livro), atingindo enfim a posição de professor de retórica (IV Livro), até chegar, a meio termo do volume (Livros V a VIII), no processo de conversão ao catolicismo. A partir deste ponto temos a referência ao presente, e não mais ao passado: é o momento da escrita que se revela, numa perspectiva puramente teológica: a preocupação do Autor já não é a de revelar a sua vida pessoal, mas a Vida atrelada intimamente ao caráter escatológico das escrituras (Livros IX a XIII). No entanto, nesta reflexão sobre o presente encontramos a preocupação com o futuro:

“Assim é, para que eu ‘alcance aquele por quem já fui alcançado’ e me desprenda da dissipação dos dias antigos, seguindo a Deus uno. Assim, ‘esquecendo o passado’, sem a preocupação das coisas futuras que passarão, e inteiramente ‘voltado para o que é’ eterno, ‘poderei caminhar para o prêmio da vocação do alto’, não na distensão, mas com desejo pleno; lá ‘ouvirei o cântico de teus louvores’ e ‘contemplarei a tua beleza’, que não tem começo nem fim. [...] Mas eu me dispersei nos tempos cuja ordem ignoro, e os meus pensamentos, vísceras da minha alma, são dilacerados por tumultuosas vicissitudes, até que eu purificado pelo fogo do teu amor mergulho em ti.”[5]

A relação é clara: o presente possibilita a união do passado com o futuro – um passado que deve ser abandonado para quem busca o caminho da Salvação (e as Confissões não têm outro objetivo senão o da conversão do leitor enquanto um testemunho da descoberta de um caminho salvífico) em direção ao futuro onde o tempo não mais existirá, pois ele será toda a eternidade. Impossível desvincular o caráter “engajado” do texto agostiniano de seu caráter literário. Mais do que uma autobiografia, o Santo de Hipona pretende presentificar pela palavra escrita os dois extremos da existência: o terreno, de sofrimentos e de busca e o futuro, da eternidade.

Referências Bibliográficas:

AGOSTINHO (1984). Confissões. São Paulo: Paulus.
AQUINO, Tomás de (1990). Suma Contra os Gentios. Vol. 1. Porto Alegre: Sulina.SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante (2001). Para Ler os Medievais. Petrópolis: Vozes

[1] SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante (2001). Para Ler os Medievais. Petrópolis: Vozes, p. 79.
[2] AQUINO, Tomás de (1990). Suma Contra os Gentios. Vol. 1. Porto Alegre: Sulina, pp. 45-67, passim.
[3] AGOSTINHO (1984). Confissões. São Paulo: Paulus, pp. 275-276.
[4] SCHUBACK, Op. cit., p. 89.
[5] AGOSTINHO. Op. cit., p. 356.

quinta-feira, junho 09, 2005



por André de Oliveira


Sócrates estava lá, sentado no cantinho dele, quando, de repente, uma maçã atinge sua cabeça. Não, não é nada disso, essa é uma outra história. Como dizia, Sócrates estava lá sentado, pensando na vida, quando lhe veio a idéia : não seria possível a existência de um conhecimento que tivesse o grau de certeza que nos proporciona a matemática mas que se refira a fatos concretos ? Sim, talvez.

Então saiu feito um maluco a perguntar às pessoas o que seria a justiça, a coragem, a bondade. E lhe davam exemplos de pessoas justas, corajosas, bondosas. Aí ele citava homens que haviam feito algo bem diferente mas que não deixava de qualificá-los de justos, corajosos e bondosos. O que significava que deveria haver algo de comum em ações tão diferentes que nos fazia considerá-los assim. Os amigos e discípulos propunham isso e aquilo e ele ia eliminando as possibilidades que não se encaixavam. Foi isso, em resumo, que fez o incomensurável Sócrates. E o mataram por tal ousadia.

Platão também era um desocupado. Sem ter o que fazer, resolveu seguir Sócrates. E aprofundou a dialética criada pelo professor. Aristóteles foi ainda mais longe, fundando várias ciências. O fato é que todos eles queriam apenas saber mais para poderem ser mais, e ser mais para poderem conhecer mais. E nunca passou disso.

Apesar de todos os desvios, a coisa continuou assim até a Idade Média, quando ser mais tornou-se ser santo. Até então, nenhum filósofo que não se desviou desse caminho se disse sábio. Mas a partir daí, todos se proclamaram sabidos. É isso mesmo : na impossibilidade de se tornarem sábios, os humildes homens modernos se conformaram em ser sabidos.

Muito ocupadinhos, não tiveram tempo de estudar as bobagens que haviam escrito os três ultrapassados velhinhos gregos. Além do mais, o conhecimento que eles estavam adquirindo já era prova suficiente de que tudo que se produziu antes nada significava.

Cada um quis começar do início. Os moderninhos são todos originais. Descartes concluiu que só existiam 2 coisas : o Espírito e a extensão, e garantiu que nada os unia. Então como o Espírito poderia conhecer a extensão ? Foi necessário pedir ajuda a Deus. Depois veio Kant. Este jurou sobre o milho que a inteligência e a moral estavam completamente separadas. Conclusão : um mutilou o homem, o outro mutilou a mente. E jamais pediram perdão a ninguém pelo que fizeram. Ao contrário, houve quem rogasse a eles para perdoarem seus pecados. Sentiam-se mal diante de tamanha revelação. Ora, mas quem não se sente mal quando se deixa mutilar sem sentir dor ?

E Platão comentou com Sócrates, lá de cima : ei, é impressão minha ou esses caras estão separando tudo que a gente conseguiu unir ? E Aristóteles se intrometeu : vocês já ouviram falar em desconstrucionismo ? E um sorriso maroto brotou dos lábios de cada um.

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