sexta-feira, março 11, 2005

por Fabio Ulanin
O que faz um romance histórico? Pergunta melhor: quais os aspectos principais que compõem a narrativa para que esta seja considerada histórica? A resposta pode parecer óbvia: o romance histórico é aquele que retrata com a maior fidelidade possível uma determinada época, seus costumes, sua forma de expressão, seus movimentos sociais, políticos, religiosos – em uma palavra, é aquele que torna claro o movimento cultural íntimo de uma determinada época. Assim, romances como O Nome da Rosa, de Umberto Eco, que retrata a Idade Média do século XIII, por exemplo, ou qualquer desses inúmeros best-sellers cujo enredo transcorre em terras brasileiras de séculos passados – O xangô de Baker Street, de Jô Soares, ou Boca do Inferno, de Ana Miranda. Não discutimos, por ora, a qualidade dos textos, mas apenas a sua aparente caracterização histórica – e aparente porque acreditamos que a inserção da narrativa, a sua ambientação, o modo pelo qual se expressam as personagens, não são dados suficientes para que possamos definir tal obra como eminentemente histórica. Na maior parte das vezes, na verdade, o fato histórico permanece apenas como pano de fundo para uma narrativa que pouco tem a ver com a época. E, se tem, é de menor importância. No caso do romance de Umberto Eco, a ambientação serve, antes dos crimes misteriosos que ocorrem na abadia, para que o autor crie relações internas do texto com outros textos, num exercício metalingüístico constante; no caso de O Xangô..., ainda que a metalinguagem também seja encontrada, em menor grau, as referências históricas ao Imperador e à corte carioca funcionam muito bem para a brincadeira jocosa que o escritor pretende: a sátira; já em Ana Miranda, as personagens é que oferecem o tom de veracidade do romance, ao encontrarmos, cruzando-se e dialogando pelas ruas de Salvador, Gregório de Matos e Padre António Vieira – e mais uma vez, o exercício metalingüístico, as abundantes citações dos poemas e trechos dos sermões.

Voltemos à pergunta, agora reformulada: estas referências metalingüísticas se mostram suficientes para que classifiquemos determinada obra como histórica? Medidas as proporções de qualidade entre os três exemplos citados, encontramos um ponto comum – e a metalinguagem é um fato casual, no sentido que pretendo dar a esta mínima investigação. Casual, pois que encontramos outros romances, obras diversas, igualmente classificadas sob o rótulo “históricas”, mas que não apresentam este exercício de linguagem: mantêm-se no âmbito das referências à época que retrata de melhor ou pior forma, como Eu, Claudius, Imperador, de Robert Graves, ou Os Demônios de Ludlum, de Huxley. Mas uma coisa todas as obras citadas têm em comum: seja pela linguagem, seja pelo ambiente, seja pela caracterização das personagens, todas partilham da verossimilhança externa à própria obra, seguindo de perto a definição de Aristóteles na sua Poética. A verossimilhança externa é a armadilha que o autor prepara com vistas a seduzir o leitor, capturá-lo em sua trama, mergulhá-lo no tempo passado, fazendo com que ele se sinta inserido e um contexto no qual não viveu, mas alimentando a impressão de que lhe é familiar e conhecido. Há o reconhecimento das referências – e se estas faltam, ou falham, ou simplesmente inexistem, a obra histórica perde a sua força e seu poder de sedução. Ainda assim, o arcabouço referencial, seja qual for, que cria esta armadilha, não passa de um pano de fundo, restringindo-se àqueles dados essenciais para que o leitor recrie, e sua mente, os movimentos, as cidades, as vestimentas, os modos de fala.

Esta introdução ao que pretendemos desenvolver aqui pode ser longa demais, mas é necessária para que possamos centrar o olhar no romance Um Deus Passeando na Brisa da Tarde, do escritor português Mário de Carvalho. Ainda que o autor afirme que seu romance não é histórico, na medida em que a cidade na qual se desenvolve a trama, Tarcisis, jamais existiu, encontramos as referências, a verossimilhança externa, tanto pelo nomes das personagens (Lúcio Valério é o duúnviro da imaginária cidade de Tarcisis, na Lusitânia do século III; Prosepino, Apito, Iunia, Rufo Cardílio – todos nomes de caráter eminentemente romano), quanto pelas referências às localidades geográficas da península (Ébora é cidade próxima a Tarcisis e, se esta é imaginária, existiu mesmo uma Ébora – hoje Évora; ou ao Estreito de Gibraltar), e pelas referências aos deuses, romanos, lusitanos e de outras culturas (Baco, Apolo, Endovélico, Mitra), sem esquecer do período histórico no qual se desenvolve a narrativa (o século II d.C., durante o governo do Imperador estóico Marco Aurélio). Tudo contribui para que o leitor sinta-se completamente imerso no ambiente e, por conseguinte, acredite em Tarcisis e suas personagens. No entanto, há uma referência que guia toda a narrativa – e que vai além das simples referências exteriores à obra: a filosofia.

O pensamento filosófico do período da decadência de Roma preenche toda a narrativa, a cada página. Não é apenas um pano de fundo, mas arriscamos a afirmação de que é ela, a filosofia estóica, marcada pelo comportamento de Lúcio Valério e pela presença constante do Imperador Marco Aurélio (seja na forma do busto presente na repartição pública de Tarcisis, ao qual o duúnviro se abraça, seja pela presença física, na rememoração de um passado ainda mais distante, quando do diálogo entre Lúcio e o Imperador, em Roma), último representante do estoicismo e autor das Meditações, um guia de comportamento moral para os homens – públicos, principalmente –, afirmamos que é esta filosofia, como dizíamos, que conduz a narrativa e seus conflitos. Conflitos que se expandem para uma esfera muito além da cultural, já que os confrontos entre romanos, mouros, judeus e cristãos são marcados fundamentalmente pela questão religiosa – ou teológica, que parece ser um conceito mais apropriado para o contexto da obra. Para melhor percebermos este encaminhamento estóico, devemos nos recordar o que afirma esta filosofia.

Segundo Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia[1], o período conhecido como estoicismo novo ou imperial, característico dos séculos finais do Império Romano, apresentava uma índole marcadamente moral e religiosa, apresentando, também, um caráter enciclopédico. Sua visão é materialista, racional e determinista, fundamentando-se, sua concepção de mundo, na realidade física. Em outras palavras, “para o estóico o mundo é essencialmente corporal”, e o universo é “um composto de elementos reais e racionais – logoi –; suas diversas partes se mantêm unidas graças à tensão produzida pela alma universal que tudo penetra e vivifca”. Esta alma é, também, material, assim como a concepção de Deus. Impossível, para um estóico, imaginar a transcendência da matéria – e daqui um dos motivos, senão o motivo principal, para os conflitos com a cosmovisão cristã, pautada principalmente na idéia transcendental de imortalidade da alma – puramente espiritual.

O elogio à racionalidade do cosmo se revela no caráter enciclopédico do conhecimento humano. Saber mais significa aproximar-se de uma natureza divina – e divina por ser, ela também, racional. Este o motivo das referências constantes a livros e a autores no decorrer da narrativa, assim como ao ato de leitura: Lúcio afirma que lê e rele seus livros (p.13); que, ao se propor uma determinada obra, a persegue até o fim (“Propus-me um livro? Há que lê-lo”, p. 15); cita Hesíodo, Virgílio, Magão e seu tratado sobre a lavoura, Demóstenes, uma obra intitulada Tyrrenika – todo um universo de leituras que forma o seu universo de conhecimento, a sua visão do mundo e da natureza. O enciclopedismo é mais do que o gosto pela erudição – é o conceito de que os livros podem explicar, como explicam para a mentalidade estóica, o mundo e seu funcionamento.

O materialismo, o realismo e o determinismo afetam diretamente a compreensão do comportamento humano. A ética estóica pretende que o homem deva viver conforme a natureza, isto é, conforme o natural, na medida em que a natureza é racional em si. Deixemos a palavra com Mora:
“A felicidade radica na aceitação do destino, no combate contra as forças da paixão que produzem a intranqüilidade. Ao resignar-se com o destino, o homem também se resigna com a justiça, pois o mundo é, enquanto racional, justo. [...] O mal consiste no que é contrário à vontade da razão do mundo, no vício, nas paixões, na medida em que destrói e perturba o equilíbrio.”

Notamos aqui o cerne do conflito entre Lúcio Valério e Iunia. O governador da cidade não pode – não consegue – aceitar uma doutrina religiosa que vá além do natural. A vontade do mundo, afinal, é, para esta filosofia, a do contínuo dinamismo de todas as coisas, e não da permanência eterna. O conceito, filosófico, torna-se religioso: para o pensamento romano, assim como o foi para o grego, os deuses assumem formas diversas – e todos os deuses, por mais móveis que sejam em suas formas e em suas vontades, têm lugar no panteão sempre crescente. Aliás, este um fato que garantiu, por mil anos, a supremacia do Império: os deuses locais eram facilmente reconhecíveis e adaptáveis para as necessidades da romanização. Não esqueçamos que a irmã mais nova de Iunia, Clélia, visita o templo de Endovélico, o deus-javali dos lusitanos. Os deuses apresentam, inclusive, suas próprias vontades, muitas vezes intransigentes – e, neste sentido, o homem é, simplesmente, dominado. Não se tem o conceito de livre-arbítrio, apenas o do destino a ser cumprido, de modo inexorável.

Para o cristão, por outro lado, o conceito de Deus, mesmo neste princípio de cristianismo, é o da imobilidade e da eternidade. Um Deus, único, que dá, em princípio, a liberdade de escolha do fiel. Um Deus, inclusive, que promete a eternidade espiritual do homem, fato que se choca com a idéia materialista (e pessimista) do estoicismo romano. O homem pode escolher o seu destino, na medida em que age com seu livre-arbítrio – a salvação ou a condenação independem da vontade divina, o que é o mesmo que afirmar que não há um destino traçado desde o princípio da vida humana.

Neste sentido, não há uma preocupação, para o estóico – e de modo fundamental para Marco Aurélio – com o destino da alma humana após a morte. O Imperador romano mantém-se rigorosamente preso à doutrina de seus antecessores: “a sorte da alma depois da morte não entra na decisão acerca do sentido da nossa vida; o dever moral se impõe por si, absolutamente, e tem em si mesmo o próprio telos”[2]. Ainda que Marco Aurélio se aproxime do pensamento cristão no que respeita ao modo pelo qual o homem deve dirigir a sua vida (caridade, amar ao próximo, agradecer a Deus, reconhecer que depende de Deus etc.), sua postura para com os cristãos é de puro estranhamento. Não compreende, de modo algum, a razão pela qual o fiel se entrega à morte com alegria, julgando, inclusive tal comportamento como teimoso, ou, como ele mesmo escreve em suas Meditações:

“Que alma está preparada para, a qualquer momento, desligar-se do corpo, extinguir-se, dissipar-se ou entrar noutra existência? E ao dizer ‘preparada’, entendo que o seja por juízo próprio, não por pura teimosia, como os cristãos, e sem fazer tragédia, porém com dignidade, para que seja convincente o exemplo dado”.[3]Este, inclusive, o comportamento de Lúcio frente a Iunia. Não compreende como uma mulher, representante da alta aristocracia romana, pode escolher ser presa com seus companheiros cristãos e, ainda por cima, entoar os cânticos de louvor enquanto todos caminham, de braços dados, em direção à prisão e à posterior condenação à morte.

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[1] MORA, J.Ferrater (2001). Dicionário de Filosofia. São Paulo : Loyola, pp. 913-915.
[2] REALE, Giovanni (1994). História da Filosofia Antiga, Vol. IV. São Paulo : Loyola, p. 120.
[3] AURÉLIO, Marco (2001). Meditações. São Paulo : Martim Claret, p. 108.

2:40 PM

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