segunda-feira, março 14, 2005

por Fabio Ulanin
A morte é outro aspecto central no romance, também pautada no comportamento estóico. Pôncio Velútio Módio suicida-se entre escombros de sua casa, demolida para a construção de uma muralha de proteção para a cidade; Clélia morre queimada pelo mouros que cercam Tarcisis; Máximo Cantaber morre ao tentar resgatar o corpo de Clélia; Iunia é condenada à morte. Todos morrem, de alguma forma, pelas ações – ou ausência de ações – tomadas por Lúcio Valério: as suas decisões são as que desencadeiam o fim. Mas, levando em consideração o que acabamos de dizer a respeito do conceito de espiritualidade estóico, a morte não representa grande drama – apenas o fim do sofrimento de uma vida; e, se não há, na filosofia acima descrita, preocupação com a alma após a morte corporal, igualmente ela é vista de forma natural, pertencente ao desenvolvimento e às mudanças naturais. A única personagem de quem “não se tem mais notícias”, já ao final do romance e pelas próprias palavras do narrador Lúcio, é Iunia, que teria seu julgamento confirmado em Roma. Não se ter notícias pode ser, aqui, uma representação simbólica deste futuro incerto para a alma cristã.

Este breve esboço do conflito entre a visão estóica romana e o cristianismo que surge não estaria completa se deixássemos de discorrer, ainda que brevemente, sobre os frutos destas formas de ver o mundo. Para o estóico, o afastamento dos bens materiais é necessário, na medida em que eles não representam o verdadeiro valor da vida. A matéria é apenas um mal necessário para a racionalização e, neste sentido, comer pouco, beber o suficiente, dormir apenas o necessário, são comportamentos que servem para que o homem olhe para aquilo que realmente interessa: a filosofia, a razão do mundo e da natureza. O estoicismo é uma filosofia da não-ação: não agir é a melhor forma de se conquistar a sabedoria e o conhecimento. Esta uma posição defendida pelo estóico Sêneca: abandona o Senado do Império, retira-se para sua vila afastada de Roma, e ocupa o seu tempo com a única função digna de um homem: pensar[1]. Pensar e ler, afastado das preocupações cotidianas, da esfera política, dos jogos de favores; em poucas palavras: aproveitar o tempo, que é incerto, sem planos futuros, sem esperanças alimentadas. Lúcio Valério, neste sentido, encontra-se numa encruzilhada: por um lado alimenta a admiração por Marco Aurélio, tenta seguir seus passos e seus conselhos; deseja, igualmente, tratar com justiça as questões políticas de Tarcisis, cedendo a cada um o que é considerado correto (mas acaba por ser aclamado tirano da cidade, envolvido numa trama política da qual não quer fazer parte). No entanto, todas as suas ações, tudo o que acontece sob a sua gestão no duunvirato, é resultado de sua incapacidade de firmar sua vontade – ou afirmá-la, o que é o mesmo; assim, Lúcia acaba como vítima se sua própria inação.

O cristianismo, centrado em Iunia, apresenta o comportamento oposto. Ao cristão não é dada a permanência, mas a ação e a decisão constantes, a luta pela conversão do outro, seguindo o preceito evangélico de ir a todas as terras levar a palavra. O cristão é móbil por excelência. E seu saber pauta-se essencialmente em um único livro – na revelação da Palavra Divina. Esta ação, esta extrema mobilidade, esta obrigação que o cristão carrega é, para o estóico, uma perturbação da ordem natural das coisas – e, como vimos, se a natureza é a própria razão de ser, perturbar esta ordem significa agir contra a razão.

Outros elementos poderiam – e deveriam – ser tratados neste breve esboço. A questão política, igualmente fundamentada no estoicismo, com seus conflitos específicos, nos encaminharia por um novo rumo analítico – Rufo, trabalhador braçal que ascende a alta posição política em Tarcisis, e seu confronto com Lúcio é representativo deste fim de império. A interferência militar dos “bárbaros” mouros e a presença de uma comunidade judaica na cidade nos oferece outro caminho possível. A visão estritamente religiosa dos rituais romanos e cristãos poderia nos elucidar outras tantas questões. Por ora, no entanto, permaneceremos com a questão estóica.

Questão que, aliás, tem pleno sentido no romance: se para o pensamento de Lúcio tudo flui interminavelmente, tudo se transforma de modo natural, o que mais esperar senão a mudança definitiva de Tarcisis? A destruição da cidade e a implantação do cristianismo. Este o confronto essencial que encontramos: entre estóicos, romanos da plebe, mouros, lusitanos e cristãos é gerada a identidade de um povo: o povo que virá a ser, dali a séculos, o português.
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[1] Em suas Cartas a Lucílio (Lisboa : Calouste Gulbenkian, 1991), Sêneca escreve ao amigo, antigo companheiro de articulações políticas no Senado: «Reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos » (p.1) e, ais adiante, «Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando não se é sequer senhor do dia seguinte ! Como são insensatos todos quantos formulam esperanças a longo prazo : hei-de comprar, hei-de construir, hei-de emprestar dinheiro e cobrá-lo com juros, hei-0de fazer carreira na política (...)» (p.554).
Referências Bibliográficas

AURÉLIO, Marco (2001). Meditações. São Paulo: Martim Claret.
CARVALHO, Mário de (1994). Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Lisboa: Caminho.
MORA, J. Ferrater (2001). Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola.
REALE, Giovanni (1994). História da Filosofia Antiga – Volume 4. São Paulo: Loyola.
SÊNECA, Lúcio Aneu (1991). Cartas a Lucílio. Lisboa: Calouste-Gulbenkian.

9:53 PM

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