quinta-feira, março 31, 2005


por Fabio Ulanin

Estas são as considerações que eu faço, e era bem que fizessem todos, sobre os juízos ocultos desta tão notável transmigração e seus efeitos. Não há escravo no Brasil - e mais quando vejo os mais miseráveis - que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que Creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança como os demais, os predestinasse para dois infernos, um nesta vida, outro na outra (Pe. António Vieira, Sermão XXVII da série "Maria, Rosa Mística")



Estamos em plena escravidão. O mais terrível, o mais absurdo, o mais absoluto terror escravocrata nos ronda e nos cerca, sussurrando palavras doces para fazer-nos dóceis. Somos Schiavos em potência, prontos para que se nos retirem os tubos de alimentação que nos mantém vivos. Somos dominados pelo mais terrível senhor de engenhos que já se teve notícia: a argumentação cientificista que se pretende detentora de um saber absoluto. O que, cá entre nós, é uma contradição: estes mesmos senhores afirmam com todas as letras a relatividade de todas as coisas, já que tudo, absolutamente tudo, depende apenas do meu, nosso, ponto de vista individual e intransferível. Somo Schiavos presos a camas, um tubo enfiado não em nossa barriga, mas em nossos cérebros – e um tubo não para nos alimentar, mas para extirpar aquela parcela que nos faz melhores que alfaces: a alma. Um Schiavo não é humano. Isso já era fato conhecido lá pelos idos do século XVI e arrastou-se até o século XIX, pelo menos, como verdade apoiada por todos os que se consideravam inteligentes e doutos.

Ser Schiavo é estar à margem, sem poder de argumentação. É não poder, não conseguir, por não lhes ser permitido, pensar livremente. É ter de obedecer às regras e às normas impostas pela simples vontade de outrem. Ser Schiavo é ter a vida dominada pela vontade alheia – e ser colocado num tronco erístico para apanhar com chicotes conceituais: e sangrar sangue verdadeiro sob os golpes de falsos argumentos. É banal: um Schiavo pode fugir de seu algoz, esconder-se embrenhando-se na mata, fundar uma comunidade de Schiavos seus irmãos – e ainda assim, será, sempre, um escravo. Será caçado, nunca banido; será preso, nunca liberto; será morto, nunca respeitado.

O Schiavo é o menor dos seres, por isso o maior dos entes. O Schiavo atravessa o deserto em busca de sua terra prometida – mas a promessa da vida, e da vida abundante, foi calada pela voz dos senhores, dos novos detentores do poder sobre a vida. Nietszche tinha razão: Deus morreu e fomos nós que o matamos – e quando matamos a Deus, temos a liberdade imoral de imolar nosso semelhante sem sentimento de culpa.

E lemos e ouvimos e pronunciamos todos os argumentos do mundo em favor da morte do nosso irmão. Um embrião não tem vida – logo, arranquemo-la com nossas mãos; uma mulher depende de aparelhos para se alimentar – logo decidimos que aquilo que ali vemos não é uma vida digna, e desligamos os aparelhos e deixamo-la morrer aos poucos, de fome, definhando. Quem argumenta dessa forma só pode ter uma atitude coerente: ser favorável aos horrores de Hitler, já que a vida de um judeu vale menos que a de um ariano. Quem defende o aborto e a eutanásia deve, por coerência moral, apoiar os campos de concentração e os fornos crematórios. Não há meio termo. Quem vê no ser um Schiavo não pode se chocar com o assassinato puro e simples sobre os quais temos notícias todos os dias na tv: matar é uma decisão válida, porque individual e relativa; não pode sequer criticar os donos das terras que matam líderes sindicais ou os membros do eme-esse-tê; não pode lamentar os famintos de África nem os fuzilados por Saddam; não tem o direito de erguer sua voz contra a guerra; não pode exigir justiça quando seu filho for assassinado.

Não percebem o mais óbvio, o mais simples, a mais reles das verdades – aliás a única Verdade: somos todos Schiavos à espera de que se nos retirem os tubos.

Mas o verdadeiro Schiavo é aquele que, mesmo sem dizer nada, apela, silencioso, pela Vida.

11:01 PM

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