sexta-feira, março 18, 2005

Conto Fantástico

por Flamarion Daia Júnior


Em minha casa tenho uma bela pintura de um cemitério durante o dia. Esse quadro me foi presenteado por meu amigo Saul Gonzaga, que o herdara de seu pai - e eu não sei de quem o pai de Saul o obteve, mas não há duvida de que o quadro foi pintado séculos atrás, provavelmente no tempo de Rembrandt, ou um pouco antes. O céu é bem azul, a grama é bem verde e as cores foram trabalhadas com maestria, de modo que, no horizonte, como é exibido no quadro, o encontro imaginário entre a relva e o céu parece ser o encontro desse mundo com o outro. Entre os túmulos há algumas árvores retorcidas, sem folhas, negras e sinistras, como guardas em posições ameaçadoras. No céu há uma pequena nuvem cinzenta que se destaca no fundo azul claro, ameaçando chuva – e para mim a nuvem simboliza, justamente, uma espécie de ameaça.

Eu coloquei este quadro em minha parede, em um canto obscuro, para não ter muito destaque. Entre muitos quadros, ele quase não aparece para um observador desatento. Prefiro assim. Eu o contemplo às vezes, encantado com sua beleza e também tentando decifrar os mistérios que estão por trás dele. Em tais ocasiões a contemplação dura horas.

Em minha casa, desde que o quadro está lá, eu vejo também, em certas ocasiões, uma bela mulher, que também me assusta. Em certas ocasiões, ela presta atenção em meus traços, como se eu estivesse posando para ela. Outras vezes, ela está examinando para os quadros da minha pinacoteca, com seu olhar de especialista. Às vezes ela balança a cabeça em sinal de desaprovação. Quando isso acontece vendo o quadro examinado por ela logo que possível. Folgo em dizer que tais ocasiões são raras e que ela deve se sentir muito feliz com meus quadros por companhia.

Também em certas ocasiões e desde que tenho o quadro eu sinto uma estranha corrente de ar, fria, gelada mesmo, que não pode vir das janelas de minha casa. Hesitei muito antes de admitir a possibilidade de tal corrente vir do quadro, o que só fiz depois de alguns eventos que em si mesmo podem ser inexplicáveis, mas que devo aceitar como reais por serem a explicação de fenômenos maiores. Eu não sei se isso é um bom sinal, um mau presságio, ou algo que acontece, como uma tempestade de neve pode muito bem acontecer no pólo norte, e sem maior influência no meu destino do que essa hipotética tempestade de neve no pólo norte possa ter, por exemplo. Mas talvez seja melhor deixar o leitor julgar e seguir com a narrativa, explicando, ou tentando explicar, as origens de tais fenômenos.

Saul Gonzaga era um muito querido amigo, o único que eu considerava capaz de conversar comigo sobre arte. Assim como eu ele tinha uma pinacoteca com muitas pinturas, e nosso maior prazer era admirar e comparar os quadros um do outro, sempre falando de arte. Não havia entre nós nenhum tipo de rivalidade, como acontece com outros colecionadores, não só devido a nossa grande amizade como também porque nossas preferências dentro da pintura eram diferentes, de modo que colecionávamos obras de escolas e estilos distintos, e assim o acervo de um complementava o do outro. Ele era pelo menos 15 anos mais velho do que eu, o que em grande parte explica porque ele tinha, na época, muito mais experiência com leiloeiros e vendedores. Suas lições muito me ajudaram, e ainda ajudam, pois afinal continuo a comprar bons quadros.
Eu não me lembro exatamente quando foi que vi o quadro com que depois meu amigo me presenteou, mas deve ter sido quando eu conheci a pinacoteca do Saul ou logo depois. Por vezes, ao visitá-lo, e me encaminhar para a pinacoteca, eu o via absorto, concentrado no belo mas um tanto sinistro quadro. Sempre tive essa opinião, que atribuía ao fato do quadro representar um cemitério e, mais tarde, à expressão aflita de meu amigo ao contemplar a obra. Provavelmente Saul percebia isso, quando interrompia sua contemplação e notava minha presença, e então ele logo se punha a falar dos outros quadros e outros assuntos.

A mulher que eu mencionei anteriormente eu também conheci na casa de Saul Gonzaga: Uma bela mulher a contemplar os quadros de Saul. Loira e de belo porte, delgada e altiva, eu a via um segundo e ela desaparecia no segundo seguinte, me deixando confuso, curioso e assustado. Eu cria, na época, que ela fosse mero produto da minha imaginação demasiada fértil, uma alucinação provocada provavelmente pelas belas imagens daqueles quadros, e não comentava isso com ninguém. Mas devo dizer que junto com o quadro isso contribuía para que eu por vezes me sentisse um tanto assustado e aflito, sem motivo aparente, na pinacoteca de Saul.

A relação entre eu, Saul e o quadro se manteve assim por vários anos. Ele já estava velho e eu já era um homem maduro quando ele me deu o quadro. Saul me explicou que, sendo aquele quadro era um objeto pessoal e não um imóvel ou um investimento, ele poderia dá-lo a mim sem maiores problemas, o que não seria o caso dos demais, pois eles estavam catalogados como peças de sua valiosa pinacoteca e muito incomodaria seus herdeiros se Saul me desse alguns deles. Haveria então uma ação judicial que eu, provavelmente, perderia. Mas aquele quadro não estava catalogado como parte da coleção e, além disso, era uma herança que nunca tinha sido avaliada por um perito, de forma que ele poderia presentear-me com ele sem a ameaça de qualquer tipo de processo.

A principio eu nada vi além de amizade naquele gesto. Considerei apenas um presente, sem maior significado, e me senti sinceramente agradecido. Mas eu estranhei quando, respondendo a uma pergunta que já não me lembro qual mas que era uma pergunta relacionada com o quadro, Saul me disse num sussurro onde eu não reconheci sua voz:
- Estou envelhecendo...

E, mais do que o sussurro, a expressão de Saul me preocupou. Era uma expressão difícil de definir, meio triste e meio assustada. Talvez também um pouco resignada. Mas era óbvio que ele não esperava nada de bom. Claro que perguntei se ele estava bem, e essas bobagens que nos ocorre perguntar quando sentimos que um amigo tem seus problemas e não sabemos de que natureza tais problemas podem ser, mas Saul foi muito evasivo e lacônico. Senti que o aborrecia e não insisti mais.

O quadro do cemitério entrou, assim, em minha casa, passando a ser parte da minha pinacoteca, mas eu não o coloquei de imediato em minha parede. Minha intenção era que o quadro tivesse um lugar de honra, pois um quadro era muito belo, malgrado as sinistras e indefinidas impressões que ele me despertava. Eu o deixei a parte, portanto, decidido a procurar o melhor lugar para ele na primeira oportunidade.

Também foi aquele o primeiro dia em que vi a mulher em minha casa, ou talvez fosse melhor dizer o seu espectro. Ela me apareceu sentada em uma de minhas poltronas, e como sempre desapareceu no instante seguinte, como se alucinação fosse. Assustei-me a princípio, mas logo recobrei a serenidade e, rindo de mim mesmo, pus-me a pensar no que a mulher poderia estar fazendo. A resposta que me ocorreu foi que ela estaria analisando minhas feições e meu corpo. Mas não pude realmente imaginar porque ela estaria fazendo isso. Eu nem mesmo poderia explicar a existência ou não dela. Mas intui que ela deveria ter alguma coisa a ver com o quadro. Só não conseguia imaginar o que.

Eu não me lembro se foi no mesmo dia ou no seguinte, mas eu tive um horrível pesadelo. Sonhei que eu estava no cemitério que o quadro mostrava, em um cortejo triste e silencioso que acompanhava um caixão. Todos estavam de preto e eu não reconheci ninguém. Eu senti vontade de chorar, pois me sentia triste por estar naquele cemitério, naquela hora, e pensava na fragilidade do ser humano, e em como é fácil perder a própria vida. Pensava também em como o cortejo apareceria se um artista de talento o retratasse, e lamentei que eu mesmo não tivesse condições de pintar nada que não fosse ridículas aquarelas amadorísticas.

Segui o cortejo até a tumba preparada para o caixão. Havia um pastor protestante, totalmente vestido de preto, e várias pessoas estavam a chorar. Alguns dos presentes me olhavam com simpatia, mas eu continuei sem reconhecer ninguém. Então eu me aproximei da tumba e li o que estava escrito: SAUL GONZAGA - PAX. Nesse instante, acordei, agitado e nervoso. E ainda deitado na cama eu vi a mulher de minhas alucinações a pintar e retocar o quadro que Saul Gonzaga tinha me dado. Ela estava concentrada, com um pincel na mão. Sem olhar para mim, se confundia com as pinturas que enfeitavam a parede, e eu não saberia dizer realmente, naquele momento, se ela era ou não uma figura real ou imaginária. Quando forcei a vista para perceber os detalhes da visão, ela tinha desaparecido. “Mas o quadro está na caixa”, eu pensei, e realmente, ao abrir a caixa, eu vi que o quadro ainda estava lá. Mas isso não diminuiu a certeza absoluta de que a mulher tinha realmente acrescentado ao quadro um detalhe, e eu o larguei, com medo de fitá-lo.

Eu abri uma garrafa de conhaque, pois precisava de alguma coisa que me desse coragem e só havia a disposição a bebida. Minha curiosidade era imensa, mas meu medo era maior e assim permaneceu enquanto eu não bebi metade da garrafa. Estava pálido, e tremia. Mas era necessário que eu examinasse o quadro, o que eu não teria feito sem a ajuda da bebida. Peguei o quadro do chão e, para ter uma visão melhor, acendi todas as velas de um candelabro e coloquei o quadro na parede, em lugar de outro. Mirei-o por várias horas. Examinei cada detalhe, como se fosse a primeira vez que via o quadro. Contei cada galho ressecado de suas árvores negras, e contei cada tumba novamente, concentrando-me na visão como se pudesse ler os nomes indecifráveis escritos naquelas lápides, e poucos minutos depois eu sofri um abalo, que me obrigou a sentar numa cadeira, e logo depois me fez procurar mais bebida, até que esvaziei as duas garrafas de conhaque que tinha em casa. Naquele momento, como até hoje, passei a ter absoluta certeza que surgira uma lapide a mais no cemitério. Sim, eu tinha certeza disso: uma lapide a mais, em um canto um tanto afastado, junto a uma das árvores ressecadas do cemitério, exatamente como eu vira em meu sonho.

A impressão que me causou esta descoberta, somada aos efeitos da bebida, me deixou totalmente alucinado e impressionável, a ponto de me acometer uma grande crise de choro. Creio que tanto chorei que cheguei a beber minhas lágrimas junto com o conhaque, pois passei a ter certeza, sem nenhuma base racional, que meu amigo Saul Gonzaga estava morto. Certamente poderia me consolar, considerando que o que tinha visto era uma base muito fraca. Eu poderia ter me enganado, até por estar bêbedo e por ter acordado depois de um sonho ruim, e por ser uma pessoa de natureza neurótica e impressionável. No entanto, eu não pensei em nada disso e se me fosse possível ouvir uma pessoa argumentar assim eu a repeliria, pois eu tinha certeza absoluta que meu amigo Saul Gonzaga estava morto, tão certo quanto se em vez de uma visão distorcida e um pesadelo eu tivesse sido informado por todas as pessoas confiáveis do mundo, e só me restava, então, chorar, e chorar como um bêbedo louco, o alucinado em que me transformara.

Passei o resto da madrugada e todo o dia seguinte bebendo (pois tinha comprado mais bebida, além das que já tinha em casa) e chorando, a ponto de preocupar algumas pessoas de minha intimidade. Eu só vim a desfalecer depois de um dia e algumas horas. Eu não conseguia articular palavras racionais, pelo que depois me contaram, e ninguém entendia o transe em que me encontrava. Felizmente, pois temo que me achariam louco, ou então tremeriam por sua vez de terror, sobretudo depois de terem a confirmação da notícia da morte de meu amigo, que tive naquela mesma semana. Ele morrera em uma viagem. Aparentemente teve um infarto depois de um jantar. Morrera no mesmo dia em que eu tive o maldito e profético pesadelo, antes que eu dormisse e sonhasse com seu enterro. Minha angustia era correta e acertada, portanto, e meu sonho não me enganara, e eu estava certo em acreditar em sua morte, como eu sempre soube, mesmo quando não havia para isso nenhuma base lógica. Mas eu não podia pedir que ninguém confiasse em mim se mostrasse a mudança no quadro, com uma lapide a mais no cemitério, o que provaria a existência de fenômenos inexplicáveis, porque eu era o único que sabia como era o quadro antes da alteração que o fantasma da mulher loira fizera nele, já que eu era o único que conhecera o quadro antes que dentro dele acontecesse o enterro do meu querido amigo. Todos os que tinham examinado o quadro além de mim estavam mortos, a começar pelo próprio Saul Gonzaga.

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Recebi por essa época uma carta póstuma de meu amigo. Ele a tinha escrito, com instruções de só me entregarem depois de morto, e tinha especificado bem que só eu poderia ler a missiva. Nesta carta, em resumo, ele me contava o que sabia do quadro: Que este fora pintado séculos atrás, representando um cemitério vazio. Mas seus donos, uma vez mortos, eram simbolicamente enterrados lá. O pai de Saul o tinha recebido de um amigo cujo nome Saul desconhecia. Mas como poderiam ser enterrados, mesmo simbolicamente, os donos do quadro dentro do próprio quadro? Saul, ao fazer algumas pesquisas, descobrira uma estranha lenda que dizia ser o autor do quadro uma mulher desconhecida. Essa mulher, muito bela, teria sido condenada por feitiçaria no século XVI ou XVII, e aparecera como um espectro na casa do juiz que a mandara para fogueira. O fantasma enlouqueceu o juiz, que terminou sua vida como prisioneiro de um asilo, amarrado junto a uma parede, alternando gritos medonhos com crises de choro.

O quadro deveria ter sido destruído, mas foi roubado por um colecionador, impressionado por sua beleza estranha. Este colecionador foi o primeiro homem a ser enterrado simbolicamente no cemitério. Deixou a seus herdeiros uma rica e bela pinacoteca, que criara, aparentemente, com a assistência do fantasma que por vezes aparecia para retocar o quadro. Sempre houve, entre os homens, pessoas que se consolam das misérias deste mundo e das angústias do outro através da arte. E sempre houve obras de arte que podem ser adquiridas por pouco dinheiro por pessoas com sensibilidade bastante para reconhecê-las.

Esta sensibilidade, aliás, é condição para que alguém tenha o quadro. Um espírito tacanho e indiferente à beleza certamente o destruiria, assustado com suas qualidades sobrenaturais, e o resultado seria que suas angustias piorariam e muito, levando o filisteu à loucura, pois a pintora, obcecada pela obra mesmo depois de morta, não hesitaria em se vingar desse ultraje. Por isso os donos do quadro sempre evitaram que este caísse em mãos erradas antes de morrerem, como Saul Gonzaga tinha feito, ao me presenteá-lo.

Felizmente, e isso talvez se deva a influência do fantasma, os donos do quadro sempre encontram pessoas capazes de admirar a profunda ainda que sinistra beleza da pintura, o que não só é tranqüilizante como ainda é oportunidade de um convívio muito agradável. Eu tenho tido a sorte de ser muito amigo de meu futuro genro, namorado de minha filha, uma mocinha muito prendada e disciplinada, ainda que sem sensibilidade para a arte, o que não considero obrigatório para todas as pessoas. Só para àquelas com quem desejo travar amizade, como é o caso de meu genro. Ele inclusive tem uma pequena e bela pinacoteca, e a diferença entre nossas idades é só um pouco maior da que havia entre mim e Saul.

Eu sonho eventualmente com o cemitério retratado pelo quadro. Lá está a tumba de Saul Gonzaga, ao lado de várias lápides de nomes indecifráveis. A tumba de Saul Gonzaga é a mais bem cuidada do cemitério, pois eu comprei para o quadro uma rica e bem feita moldura. E quando coloquei o quadro na moldura o efeito foi tão satisfatório que me atrevi a exigir, em pensamento, que o fantasma da bela pintora retribuísse o favor e pintasse para meu amigo a melhor tumba que pudesse. Em meus sonhos tenho tido ao menos o prazer de ver que, apesar do terror que o quadro possa provocar-me eventualmente, esse meu desejo é atendido.

10:38 PM

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