sexta-feira, março 04, 2005

por Rodrigo R. Pedroso

Faz algumas semanas, meu estimado amigo André de Oliveira publicou, aqui no Oito Colunas, o artigo "A Igreja em xeque", e pediu-me que eu fizesse algumas considerações. Na verdade, eu mesmo queria muito emitir alguma opinião sobre o texto, e disso fui impedido, não apenas por uma vida anormalmente assoberbada de ocupações, quanto pela espera do momento oportuno e, em especial, das palavras oportunas, dado o receio que eu tinha de dizer algo que pudesse desagradar um amigo que tenho em tão alta conta.

No artigo a que me refiro, o autor parte do filme "Jesus de Nazaré", de Franco Zefirelli, para distinguir, entre os judeus da época de Jesus, três diferentes posicionamentos: aqueles que se acumpliciam com a dominação romana, os que pretendem libertar o povo de Israel através de uma revolução violenta e da tomada do poder político, e aqueles que seguem a via de transformação interior e espiritual ensinada por Jesus. O autor do texto entende que o mundo continua dividido nesses três grupos, e que a Igreja é chamada a decidir se quer pertencer ao terceiro ou ao segundo. Deplora, ainda, o fato da Igreja aparentemente estar mais preocupada com a cobiça do ter, do que com a ambição do poder.

Devo dizer, todavia, que a riqueza e o poder não se contrapõem, mas pertencem ao mesmo gênero. Ter muito dinheiro não deixa de ser uma forma de ter poder -- "O rico manda os pobres, e o que toma emprestado torna-se escravo do que lhe empresta" (Prov 22,7). Desculpem-me pela indelicadeza da expressão, mas o fulano que é rico só não tem poder quando é muito burro. E se o fulano é rico, mas é burro, logo um mais esperto (não necessariamente um mais forte) poderá lhe tirar toda a riqueza. Ademais, não há como organizar qualquer movimento revolucionário, sem ter dinheiro para financiá-lo -- o que mostra a falácia de todas as revoluções promovidas em nome dos "pobres". O poder acompanha a riqueza, assim como a riqueza acompanha o poder. E, acima deles, está a inteligência. O fulano pode ser rico e poderoso, mas, se for burro, isso nada lhe adianta e, a curto ou longo prazo, perderá tanto o poder e a riqueza: "Às vezes sai um do cárcere e dos ferros para ser rei, e outro que nasceu rei acaba na miséria" (Ecl 4,14).

De modo que não considero distintas a cobiça do ter e a do poder. Ambas, na verdade, tendem ao mesmo objeto: o avarento acumula dinheiro porque isso lhe dá poder; quem cobiça o poder muitas vezes o faz para controlar a riqueza alheia. Não se pode dizer, portanto, que o desejo de poder seja pior ou melhor que o desejo da riqueza. Vale lembrar, também, que Judas não traiu Jesus por poder, mas por dinheiro, e que ele já tinha há muito um pendor especial pelo vil metal nos é informado pelos Evangelhos, que contam que ele "era ladrão e, tendo a bolsa, roubava o que se lançava nela." (Jo 12,6)

Na verdade, o problema não está no poder nem na riqueza, mas no seu desejo imoderado e desordenado, que nasce, penso eu, da falta da humildade. Os leitores provavelmente não sabem, mas o autor destas linhas já militou na esquerda, no final da adolescência e no começo da juventude. Talvez o tenha feito por contraposição ao meu pai, que sempre foi um homem de posições bastante conservadoras. O fato é que sair da esquerda e libertar-me de seus preconceitos foi um processo relativamente longo e doloroso, que passou pela leitura das obras de Olavo de Carvalho, pelo aprofundamento no estudo do Magistério da Igreja e pela experiência concreta e decepcionante no movimento estudantil. Todavia, a ruptura definitiva com o socialismo me veio mesmo quando ouvi, numa aula sobre Sto. Tomás de Aquino, uma frase do Angélico Doutor: "É sinal de presunção, e não de sabedoria cristã, querer colocar-se acima dos outros para lhes fazer o bem". Esta frase foi, para mim, como uma sentença condenatória, um soco na alma.

Vejam bem que o Aquinatense não reprova nem o poder, nem a riqueza, mas a presunção de que somos melhores que aqueles que os detém. Afinal de contas, se o fulano quer mesmo fazer o bem, ele não precisa ter poder sobre ninguém, nem tampouco de riquezas -- "Ninguém é tão rico que não careça dos outros, ninguém é tão pobre que não possa, em alguma coisa, ser útil a outrem", dizia o Papa Leão XIII (Encíclica Graves de Communi, 22). O Evangelho não coloca óbice algum contra quem queira trabalhar para um mundo melhor, só impõe a condição de que, se o fulano quer mesmo melhorar o mundo, que comece de onde ele está, na posição social em que ele se encontra, com os meios de que ele atualmente dispõe.

A partir da frase de Sto. Tomás, gostaria de tecer alguns comentários também ao artigo de Armando Valladares, "João Paulo II, Cuba e um dilema de consciência", publicado no portal Mídia sem Máscara, em 17 de janeiro deste ano (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=3220). Para quem não conhece, Valladares é o autor do livro "Contra toda Esperança", em que narra os 22 anos que passou como preso político do regime cubano, e cuja leitura a todos recomendo. Todavia, no artigo citado, Valladares lamentavelmente deu um exemplo daquilo que, segundo Sto. Tomás, não se deve querer fazer: colocar-se acima dos outros para fazer o bem.

No artigo a que me refiro, Valladares procura fazer crer que o reconhecimento de aspectos positivos do regime cubano, por parte do Papa, levaria os católicos cubanos a um suposto "dilema de consciência". Trata-se, evidentemente, de uma tempestade em copo d'água, uma vez que a Igreja não mudou seus ensinamentos a respeito do comunismo, nem o Papa negou aos católicos cubanos o direito de se opor ao regime. Não cabe ao Papa derrubar governos, e se os cubanos não o fazem, o Papa deve procurar manter relações amistosas com o governo estabelecido, seja ele qual for.

Eu fico imaginando o que Valladares quer que o Papa faça. Convocar todos os cubanos para uma guerra santa contra Fidel? É, por acaso, esse o papel do Papa? Que consequências acarretaria, para o povo cubano e a Igreja em Cuba, um pronunciamento imprudente e mais atrevido do Papa contra o regime? O Papa está fazendo o que ele pode: já que o Valladares não consegue tirar o barbudo de lá, vamos pelo menos tentar fazer amizade com o homem, para ver se conseguimos salvar alguma coisa.

No fundo, é muito fácil para o Sr. Armando Valladares fazer-se crítico e juiz dos atos do Papa, estando bem seguro em seu exílio norte-americano. O difícil é estar na pele do Romano Pontífice, responsável pela Igreja no mundo inteiro, e não somente em Cuba. Na verdade, é difícil exercer o poder. Como dizia Platão, "se surgisse uma cidade de homens bons, é provável que nela se lutasse para fugir do poder, como agora se luta para obtê-lo" (A República, Livro I, p. 30. São Paulo, Nova Cultural, 1997). Esta é uma das razões pelas quais devemos ser extremamente prudentes em julgar nossos superiores, ainda mais quando se trata do Chefe visível da Igreja. Eu poderia até criticar o Papa, mas quem garante que, se eu estivesse lá, faria algo melhor?

É por essa razão que, de minha parte, resolvi seguir este preceito: jamais criticar alguém quando eu não tenho absoluta certeza de que faria algo melhor em seu lugar. Trata-se de simples consequência lógica da constatação de Sto. Tomás: "É sinal de presunção, e não de sabedoria cristã, colocar-se acima dos outros para lhes fazer o bem". Não se pode negar que criticar e julgar uma pessoa é colocar-se acima dela. E o cristão preocupa-se antes do mais com a própria vida, com os seus próprios deveres, e não com os alheios. Não é sinal de sabedoria cristã ficar pensando: "Se eu fosse o Papa, se eu fosse o Bush, se eu fosse o Lula, faria isto ou aquilo..." Eu não sou o Papa, eu não sou o Bush, eu não sou o Lula. Eu sou o Rodrigo. E, estando o mundo como está, o que o Rodrigo, estando onde ele está, tem a obrigação de fazer?

As pessoas que constróem não são aquelas que estão preocupadas com o que os outros fizeram ou deixaram de fazer. São aquelas que, utilizando todos os meios lícitos que têm à mão, procuram remediar as carências da humanidade de seu tempo, na posição e no lugar em que a Providência as colocou.

7:50 PM

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