quinta-feira, abril 28, 2005



por Fabio Ulanin


Discute-se muito as novas diretrizes que deveriam reger nossa literatura. Discussão que tem origens na França da década de 70, pela obra de supostos pensadores como Lyotard e Baudrillard, que trouxeram à tona a chamada produção “pós-moderna”. Da França, espalhou-se pelo mundo a nova façanha intelectual, criando um rótulo cômodo a acomodado para os nossos intelectuais: no “pós-moderno” tudo cabe, tudo é valorado, tudo é possível, como um gigantesco saco de gatos do qual extraímos estéticas e teorias e no qual encontramos justificativa para qualquer absurdo non-sense que se passa por arte. Claro, não podemos nos esquecer que este movimento apresenta uma faceta que não se ousa revelar: esta discussão filosófica é um modismo como foi o existencialismo de Sartre, como foi o Construtivismo, como foi o próprio marxismo e, enquanto movimento modal, serve para, pelo menos, uma coisa: vender livros e mais livros, em toda e qualquer área de atuação humana - da física quântica à poesia, da sociologia à informática, passando pela lingüística, pelo direito, pela história e pela defesa politicamente correta das chamadas minorias - que existem, mas calma! não é pelo fato de que um escritor é negro, gay ou mulher que ele se torna melhor que qualquer outro. Machado de Assis era mulato, epiléptico, feio e grande escritor, como também o era Cruz e Souza, que perdeu todos os seus filhos e viu a esposa mergulhar tragicamente na loucura; porém a crítica politicamente correta, seguindo o policiamento ideológico do Movimento Negro, afirma que estes dois escritores “negavam” suas origens pelo simples fato de escreverem como europeus brancos! Valora-se assim o escritor pelo seu adjetivo, não pelo substantivo, gerando desta forma uma inversão de valores: algo é bom pelas suas qualidades, e não pelo que de fato é.

Deixemos o aprofundamento desta discussão para outra oportunidade. O que é apresentado brevemente aqui já se mostra suficiente para tentar, em linhas gerais, analisar o caso de um poeta brasileiro de alto valor: Gerardo Mello Mourão. Nascido em Ipueiras, Ceará, em 1917, este poeta engajou-se no Integralismo de Plínio Salgado, tido como a versão tupiniquim do fascismo italiano; foi professor, jornalista, deputado federal, viveu na Europa, passou pelos Estados Unidos da América, viajou pela China comunista em pleno regime militar brasileiro e apresenta um posicionamento político e ideológico que vai radicalmente contra todo o status intelectual de nossa intelligenzia política e universitária pautadas no esquema desgastado das esquerdas. Enfim, é um homem rotulado de “direitista” e “reacionário”. É o que basta para ser alvo da maldição que emana dos sarcófagos acadêmicos “pós-modernos”.

A pergunta que cabe é: basta um posicionamento político para fazer um bom escritor? Segundo nossos intelectuais, sim, afinal arte deve(ria) seguir modelos “progressistas” (seja lá o que significa isto) e não pautar-se em valores ultrapassados há muito. Desta maneira, Gerardo Mello Mourão não passa(ria) de um versejador de quinta categoria, não merecendo o menor destaque pelo fato de ter recebido, no ano de 1999, um dos principais prêmios literários brasileiros: o Jabuti, pelo seu poema épico Invenção do Mar.

Mas a verdade, aquela Verdade parte da tríade grega (o Bom, o Belo e o Verdadeiro), é outra: Mello Mourão é poeta, e grande poeta, que resgata os valores clássicos da literatura, na busca incessante de criar poemas que revelem mais do que um modismo: a Poesia na mais alta acepção da palavra, no recorte sensível de uma realidade da qual fazemos parte e não temos olhos para ver. Em outras palavras, o resgate da poíesis, do fazer poético, em confronto imediato com a techné, a técnica que reproduz este fazer. Basta um pequeno trecho do poema “O que as sereias diziam a Ulisses na noite do mar” (in Cânon e Fuga, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 9) para notarmos que o alto índice de erotismo existente no poema foge de toda e qualquer pretensão pós-qualquer-coisa da gratuidade sexual encontrada mídia afora:

“Ninguém jamais ouviu canto igual
ao canto que te canto
escuta: as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar
só ouvem minha voz - a noite e o mar e tu
marinheiro do mar de rosas verdes:

virás: é um leito de rosas e lençóis de jasmim - e ao ritmo
de teu corpo entre a cintura e as ancas
mais o lençol de aromas de meu corpo
em monte de pétalas desfeito:

[...]

Todas as deusas se entregam
ao amante que um dia possuiu uma deusa
e então todas as fêmeas dos homens
Helenas, Briseidas e a Penélope tua
hão de implorar às Musas - e as Musas e Eros e Afrodite
a volúpia de uma noite contigo.”

O que Mello Mourão nos revela é mais do que o puro erotismo: é a leitura musical do canto da sereia, revisto da Odisséia, explorado não só como palavra, mas como música pura (o próprio poeta nos afirma que escreve sobre a frase musical “Was sagen die Sirenen als Odysseus vorbei segelte”, de Ivar Frounberg). Intertextualidade, diriam os mais afoitos representantes de nossa atual crítica. Poesia pura e verdadeira, diz este obscuro escrivinhador. Se o valor deste poema estivesse apenas no fator intertextual nele encontrado, então poderíamos apenas cogitar uma criatividade mediana. Mas o poema nos propõe um valor além deste: é uma leitura clara do próprio ritmo do verso grego, somado à música (como era a poesia em suas origens) e à oralidade: é um poema para ser cantado, não apenas lido. A recorrência das palavras, através do recurso da repetição (“as ondas e os ventos se calaram e a noite e o mar/ ouvem minha voz - a noite e o mar e tu”), nos oferece o ritmo adequado do próprio movimento do mar e do mesmo movimento das “ancas”.

Ao selecionar a Sereia como voz do poema, Mello Mourão universaliza a sua fala. Nestes tempos de valorização individual, o resgate do universal é um choque que não é admitido pela crítica. O rótulo de “antiquado” é facilmente utilizado pela intelligenzia, na vã tentativa de desmerecer toda uma cultura, fonte da nossa: a grega, com a visão aristotélica da literatura, tão esquecida e relegada ao segundo plano como algo “ultrapassado” e sem aplicabilidade. Este, talvez, o grande problema: esquecemos as nossas origens e passamos a valorizar apenas o que é “novo”, moldado pelo modismo fácil e digestivo que se volta à mera literatura de consumo. Mas o poeta vai mais além, resgatando o terceto como forma poética apropriada, levando o leitor a um outro universo: o do início da renascença, como no poema IX do Canto III de sua Invenção do Mar (Rio de Janeiro: Record, 1998, p.117):

“E da nau capitânia de Pedrálvares
vamos às armas, às capitanias
hereditárias com seus donatários.

A terra se amadura em sangues vivos
de visigodos, celtas, celtiberos
portugueses das cepas henriquinas.

E tupis e tapuias e aimorés,
timbiras, tabajaras, potiguaras,
guaicurus, guaranis e goitacazes.

E os negros arrastados dos Benins,
das Angolas, Guinés e Moçambiques
temperam com seu riso e sua dor

a beleza do rosto das mulheres
o braço varonil de seus varões
a alma auroral da raça da esperança

os negros, Abdias - Abdias Nascimento, os negros!”

Não por acaso o poeta escolhe o terceto renascentista (com terza rima aproximada): este foi o período de revaloração da épica (com Dante e sua Divina Comédia; com Camões e Os Lusíadas - também resgatado em outros cantos do poema, enquanto referência formal -, com a Jerusalém Libertada, de Tasso, dentre outros) nos moldes clássicos. Assim, soma-se a referência puramente formal com outra, conteudística: a construção do Brasil, fruto das navegações portuguesas, misto de uma série de culturas diferentes mas concordantes. “Visigodos, celtas, celtiberos” são “portugueses” (basta lembrarmos dos textos de Rainer Reihnhardt que tratam das origens do povo luso para comprovarmos o que nos traz o poema) que, somados aos índios da nova terra (“tupis e tapuias e aimorés,/timbiras, tabajaras, potiguaras,/guaicurus, guaranis e goitacazes”) e aos negros vindos das nações africanas (notemos o uso do plural em “Angolas, Guinés, Moçambiques”) irão construir a “alma auroral da raça da esperança” - o brasileiro. Esta miscigenação de raças e culturas gera um Renascimento - o da esperança, o do verdadeiro valor de uma nação, o da Raça como fonte única para a construção do novo mundo, revestido de todo o misticismo profético sebastianista português que vai encontrar continuidade no nordeste brasileiro:

“Sebastião! Sebastião! - depois do mar
Sebastião! Sebastião! - no mato adentro
a noite e o dia levam ao destino

e este destino é vê-lo de repente
com seu rosto de Arcanjo e sua espada
a armadura de prata ao sol do trópico.

Na menina dos olhos sua imagem
no coração - presente o grande ausente
seu nome na garganta e flor da boca.

[...]

Raça do mar, gerados pelas ondas
com as raças da terra e de outras terras
iam gerando sua nova raça.

Sebastião! em todas as partidas
Sebastião! Em todas as chegadas
onde o sertão for mar e o mar sertão.”
(Invenção do mar, Canto III, poema VIII, pp. 115-116)

A nova raça é formada, assim, para o cumprimento da Profecia, inevitável como a transformação, também profética segundo Padre Cícero, do mar em sertão e do sertão em mar. Podemos afirmar que este é o poema épico sobre a formação do Brasil no cumprimento do destino de Portugal: a construção da Ilha Brasil mítica, paraíso na terra, de onde surgirá a nova humanidade. Como épico e resgate dos valores clássicos, não poderia de deixar de explorar a musicalidade do verso - mais uma vez o canto que se abre e se valoriza sobre a palavra poética.

Exatamente por estes dois fatores: o formal clássico e o conteudístico nacionalista, é que a atual crítica rejeita Gerardo Mello Mourão. É mais fácil dar louvores à mediocridade na arte contemporânea - que não coloca em risco nossos juízos de valores acomodados na enfadonha repetição de lugares-comuns na forma de rótulos - do que ter de fazer o esforço intelectivo de encontrar a Beleza, a Bondade e a Verdade, sempre mais exigentes. Além disso, Mello Mourão não compartilha com a “nova onda” da crítica dominada pelas esquerdas, segundo a qual todo e qualquer nacionalismo cheira a comportamento reacionário e manutenção de status aristocráticos. As esquerdas ainda seguem sua cartilha para cumprir seu objetivo: a destruição dos verdadeiros valores que formam a humanidade. A tentativa da intelligenzia em destruir um poeta como Mello Mourão através de rótulos fáceis e frágeis é compreensível, pois compreendê-lo significaria ter de assumir um posicionamento frente à realidade despido de dogmas e, desta forma, partir em busca das verdades histórica, estética e filosófica. O que, digamos, não é nada fácil para as mentalidades “pós-modernas” obscurecidas pela retórica politicamente correta.

9:41 PM

2 comentários:

at 5:25 PM camiseteria disse...

Certamente não tenho condição para dar tal veredito, mas tenho para mim que Gerardo Melo Mourão é o maior poeta brasileiro dos últimos 100 anos.

E belo artigo, Ulanin.

at 11:37 PM Beto Queiroz disse...

Relendo, citando este artigo, me dou conta de como o escrevinhador deveria mostrar-se mais...