quarta-feira, abril 13, 2005


por André de Oliveira

No livro “ Corpo, Alma e Saúde ”, Giovanni Reale demonstra como era entendido o conceito de alma na Grécia na época de Homero. Deixemos que o próprio autor fale: “ A psyche nos poemas homéricos é a imagem do morto privada de consciência e de iteligência ”, ou seja, “ a psyche não é a idéia da vida enquanto tal, mas a idéia da vida-que-se-vai e particularmente a idéia do morto ”. Não havia a idéia da imortalidade da alma, pois ela não era o eu do indivíduo, mas o que restava dele depois da morte, representando apenas o que ele foi. Por isso a imortalidade só era possível pela lembrança das realizações humanas, dos gestos heróicos.

Depois ele nos ensina que os gregos daqueles tempos não tinham a idéia de corpo como algo unitário que representasse o indivíduo. Enquanto vivo, o corpo só era compreendido na sua multiplicidade, ou seja, cada função vital designada na narrativa homérica simbolizava o todo do homem naquele momento. O bater do coração ou o golpe dado com o braço faziam esses órgãos representarem, no momento em que eram enfatizados, o homem por inteiro, isto é, cada parte simbolizava o todo em determinado momento. No dizer de Fränkel : “ O homem identifica-se, portanto, com a sua ação, e se deixa compreender de modo completo e válido pela sua ação; ele não tem profundidades escondidas. [...] O homem homérico compreende-se muito mais no seu agir do que no seu ser. ” O termo “soma” era usado para designar o organismo depois de morto, e só aí era visto de forma unitária, mas justamente por deixar de ter qualquer função. Por isso é que a idéia de corpo como algo único que representasse a imagem do indivíduo só foi possível depois que a alma passou a designar a personalidade de cada um, ou seja, “o ser”, o que só ocorre com Sócrates. Isto significa que a idéia física do homem como um todo só surgiu depois da idéia de alma como, no dizer de Havelock, “ espírito que pensa, isto é, capaz tanto de decisão moral quanto de conhecimento científico, e a sede da responsabilidade moral, algo infinitamente precioso, uma essência única no reino da natureza ”.

Essa é uma fase belíssima da história humana, pois precede as conquistas fundamentais de Sócrates, Platão e Aristóteles. É uma época de transição. Os filósofos naturalistas exprimiam muito bem esse aspecto do seu tempo ao tentarem encontrar um elemento que fosse a origem de tudo. Esse empreendimento demonstra que eles já tinham uma visão unificada da natureza, ou seja, já concebiam a multiplicidade do mundo numa unidade, simbolizada como origem. Apesar disso, ainda não possuíam a idéia de consciência, ou seja, não eram conscientes de serem conscientes, por isso não poderia ainda haver conhecimento do tipo científico. Como bem enfatizou Olavo de Carvalho na sua aula 5 - Os Pré Socráticos - , não era bem filosofia o que se fazia naquela época, pois o tipo de conhecimento era mito-poético, mesmo que sua forma de apresentação houvesse passado da narrativa para a de lei geral.

Num determinado instante, essa vontade de ver a unidade na multiplicidade atinge o ápice em Parmênides, quando este enuncia que só existe o Um, negando o múltiplo. Só é possível superar a contradição intrínseca ao pensamento parmenídico quando o Um é visto comO transcendente, o que só ocorre depois da idéia do homem também como ser transcendente, depois de Sócrates e, principalmente, Platão.

O que é incrível nisso tudo é a constante necessidade de conquistas espirituais antes que se pudesse realizar as conquistas físicas, pois o homem não apenas só consegue conceber a idéia de corpo vivo unitário após se compreender como alma transcendente, como não é capaz de alcançar um conhecimento científico antes de se libertar da visão materialista dos pré-socráticos.

Apesar disso, o homem moderno despreza todas essas conquistas e avança no conhecimento científico sem compreender que ele só foi possível devido à visão espiritual e transcendente do mundo dos 3 primeiros filósofos gregos. Relegando-os ao esquecimento, arvora-se a elaborar hipóteses para explicar a origem do universo que se aproximam cada vez mais da visão mito-poética dos pré-socráticos. Contentando-se com os resultados tecnológicos propiciados por suas teorias, o ser humano acredita estar no caminho certo, esquecendo-se desta máxima : “ de que servirá ao homem ganhar o mundo inteiro se isso redunda em detrimento da sua alma ? ”. É a verdadeira barbárie dos tempos modernos.

8:43 PM

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