quinta-feira, abril 21, 2005


por Flamarion Daia Júnior


Não há dor maior do que perder um ente querido. E mais dolorosa será a perda se for definitiva - com a morte de quem amamos. E se este morre em terríveis agonias padecemos duplamente, por um lado por nós mesmos, por outro pelo que suportar mil dores desesperadas na transformação assustadora, embora em si mesma vulgar e muito natural, da carne viva em carne inanimada, através do bem conhecido fenômeno da natureza que chamamos morte. Terrível morte, quase tão ruim para quem a testemunha quanto para quem a sofre, pois tira do sobrevivente uma pessoa amada e em troca dá a certeza de que o homem é um pobre animal frágil e desamparado em um mundo bruto e indiferente às nossas esperanças tanto quanto às nossas angustias. A dor de perder um ente querido para a morte, e de forma dolorosa, é ainda pior que a dor de ter sido abandonado. Afinal o abandonado pode sonhar, mesmo sem muitas esperanças, com a volta daquele que o deixou. Ou pode acreditar que o abandono, no fundo, é melhor para todos os envolvidos, o que não acontece com quem testemunha a morte dolorosa de uma pessoa querida.

Estes pensamentos, e a dor associada a estes pensamentos, atormentavam Lúcia, que enterrava Agnes. A morte passara a fazer parte da vida delas muito cedo, e Agnes se juntaria ao pai e aos irmãos, deixando Lúcia só naquela aldeia. O Padre que cuidava daquele cemitério a tinha ajudado a cavar, mas Lúcia devia enterrar sozinha a irmã. Isso não exigia muito esforço físico, uma vez que a terra estava ao lado da cova aberta. Mas doía no coração de Lúcia cada pá de terra que jogava sobre o cadáver da irmã. Uma dor angustiada e desesperada, onde se juntavam as lembranças da doença dolorosa da irmã, o medo da solidão a que estava condenada e a certeza de levar uma vida vazia e sem alegria, sem ternura e sem prazer, até que a própria Lúcia fosse depositada em uma cova, como Agnes tinha sido. Lúcia não teria nem mesmo uma companhia ao seu lado, ninguém que pudesse lhe amparar e se esforçar para que sua morte fosse a menos sofrida possível, como ela tinha feito por Agnes. Estava enterrando sua ultima parente.

O enterro não foi rápido. Ela teve que parar várias vezes para enxugar suas lágrimas. E, além disso, ela estava fraca. Passara os últimos dias cuidando da irmã, negligenciando sua própria alimentação e deixando de dormir, inutilmente se enfraquecendo na luta vã para tentar salvá-la.

Seu choro era quieto, sentido. Não gemia, suspirava, até mesmo por causa de sua fraqueza. Tinha dificuldades para respirar, dificuldades que aumentavam cada vez mais. Talvez estivesse com a mesma doença que Agnes...

Não, ela não queria pensar nisso. Não queria morrer como a irmã, cuspido sangue e depois cuspindo cada pedaço de seus órgãos internos, e a cada tosse, junto com o sangue, deixando escapar dolorosas lagrimas de dor... Agnes chorava diferente de Lúcia: Suas lágrimas eram abundantes e gemia alto. Padecera por dez dias. Por dez dias na casa delas só o choro de Agnes pode ser ouvido.

Agora, a casa estava silenciosa. Estaria silenciosa quando Lúcia voltasse para lá. Seria para sempre silenciosa.
Em certo momento Lúcia olhou para a cova. Percebeu que a irmã já não era visível. A terra já a tinha coberto. Agnes agora era um monte de carne podre, ossos e pelos coberto por terra.

Um monte de carne podre, ossos e pelos coberto por terra...

Lúcia, de repente, sentiu que duas grandes lágrimas rolavam por suas faces.

Enxugou o rosto com a manga da camisa. Assoou o nariz com os dedos. Respirou fundo. Chorara já muito na vida. Chorou quando seus pais morreram. Chorou quando seus irmãos e seu noivo se foram daquela aldeia, e chorou mais ainda quando soube que eles estavam mortos. Mas sempre havia a irmã para chorar com ela. As duas se uniam mais e mais em cada momento doloroso, as lágrimas de uma eram também da outra. Agora Lúcia chorava sozinha. Ela parara de jogar terra em volta e agora olhava em volta. Procurava por algo que não sabia definir. Sentia dificuldade em respirar. Ainda estava com a pá na mão.

- Lúcia, você precisa de ajuda?

Ela se virou em direção da voz. Era o Padre, o octogenário pároco da aldeia, um respeitável senhor de cabelos completamente brancos.

E vendo-o Lúcia descobriu o que sentia: Vontade de ser abraçada. Vontade de ter alguém para enxugar suas lágrimas e limpar seu rosto, como ela e Agnes fizeram uma com a outra em tantos momentos tristes. Mas a irmã estava morta...

O Padre se aproximou, preocupado com Lúcia. Não perguntou o que ela tinha. Ele sabia. Agnes tinha sido mais uma vitima das doenças que matavam tantas moças na aldeia. Essas doenças, mais do que do corpo, eram da alma. O que as moças sentiam era a dor da falta de esperanças, a tristeza pela ausência dos pais, dos irmãos, dos noivos e dos namorados. E embora condenasse tanto apego dessas moças às coisas desse mundo, nem por isso podia deixar de sentir pena delas. Lúcia (e Agnes) deveria estar casada, com filhos. Mas seu noivo estava morto...

Ela devolveu a pá ao padre, se despediu e rumou até sua casa, onde agora morava só. Onde teria o resto da vida para chorar e se lamentar, em sua solidão desesperada. Em perpétuo silêncio. Com suas dolorosas lembranças.

O Padre contemplava Lúcia com tristeza. Ele pensava na Lúcia, em Agnes e nas outras moças que morreram ou enterraram suas irmãs mortas durante a semana. A aldeia, vazia de homens, estava cheia de gente fraca: velhos, como o próprio Padre; meninos, que logo seriam chamados para se juntar aos seus pais e seus irmãos mais velhos na guerra, os que ainda tinham pais e irmãos vivos; e moças, como Lúcia, cada vez mais solitárias.

Nas arvores do cemitério havia muitos ninhos de passarinhos, e o Padre se sentia triste também quando os olhava. Mas era uma tristeza serena, pois os pássaros faziam o Padre meditar sobre a condição humana. Os ninhos eram uma prova que os pássaros da aldeia eram mais felizes que os seres humanos, pois ainda podiam se casar e constituir família. Por vezes o Padre se sentia desesperado e quase perdia a fé. Afinal, porque Deus negara a pobres moças, como Agnes e Lúcia, o que concedia a passarinhos? Mas logo o Padre chegava a conclusão de que não era realmente culpa de Deus. O problema era que os pássaros eram mais sábios que os seres humanos. Eles não organizavam nações para fazer a guerra contra seus semelhantes, não enterravam seus mortos entre lágrimas angustiadas, não se apartavam do mundo para se dedicarem exclusivamente a suas lembranças e não sabiam o que é a tristeza, este mal n'alma dos homens que enfraqueciam sua saúde e os tornavam vulneráveis às doenças mais dolorosas.

9:57 PM

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