segunda-feira, maio 23, 2005



por André de Oliveira


Seria muito difícil disfarçar, por isso desisti da tarefa antes de tentar empreendê-la. A verdade é que minha predileção por Bento XVI é notória. Se ainda não é, ficaria evidente neste artigo. Apesar de ter gostado do papado de João Paulo II e considerá-lo como imprescindível para o momento em que vivíamos e em que ainda vivemos, nenhum de seus livros ou encíclicas me empolgaram.

Desde que foi eleito papa, passei a ler vários artigos, ensaios e homilias do ex-cardeal Joseph Ratzinger. Que maravilha! Em meu blog, comentei a respeito da primeira homilia oficial, em que ele começa criticando o poder e não o dinheiro, ao contrário do que vinha fazendo a Igreja até então, e de total acordo com o meu texto A Igreja em Xeque. Num outro momento – não consegui localizar o artigo -, Ratzinger chega a concordar com a visão que expus de Barrabás, a de um reformador político, para o qual o dinheiro representou apenas o impulso final que desencadeou seu ato de traição, mas que teve como fator motivador, durante todo o tempo, a tentativa de mudar o mundo pela via do poder, opondo-se à visão de Jesus Cristo de transformar o coração dos homens.

No ensaio Verdade e Liberdade, o ex-cardeal explica, de uma maneira simples e inteligente, que a liberdade está ligada à responsabilidade e que somente a verdade pode servir de guia tanto para uma quanto para outra.

Eis como considera a visão marxista da liberdade: "o marxismo parte do princípio segundo o qual a liberdade é indivisível, quer dizer, existe como tal somente quando é de todos. A liberdade está unida à igualdade. A existência da liberdade exige, antes de tudo, o estabelecimento da igualdade. Por conseguinte, é necessário renunciar à liberdade com o fim de alcançar a meta da total liberdade. A solidariedade de quem luta pela liberdade de todos é anterior à reivindicação das liberdades individuais. A citação de Marx que serviu de ponto de partida para nossas reflexões nos mostra que a idéia de liberdade sem limites do indivíduo volta a reaparecer no final do processo. Contudo, no presente, a norma é o caráter prioritário da comunidade, a subordinação da liberdade à igualdade e, portanto, a preponderância do direito comunitário em oposição ao indivíduo. Está ligada a esta noção a suposição de que a liberdade do indivíduo depende da estrutura da totalidade e que a luta pela liberdade não deve ser travada para assegurar os direitos do indivíduo mas para modificar a estrutura do mundo."

Como é fácil perceber, é a mesma idéia de Barrabás, apenas um pouco mais sofisticada: usar o poder para estabelecer uma igualdade que criaria um homem novo, o qual seria livre porque não se relacionaria com os demais como o homem antigo, para os quais a realidade fazia com que a liberdade de um limitasse a liberdade do outro.

Por incrível que pareça, a idéia de liberdade do iluminismo não é muito diferente. Para este, a liberdade não está ligada à responsabilidade nem à verdade, até porque considera a verdade relativa, opondo-se, quando considerada absoluta, à liberdade. Sobre isto, o atual papa Bento XVI comenta: "na nova sociedade, as dependências que restringem o eu e a necessidade de altruísmo não teriam direito a seguir existindo. Sereis como deuses. É possível visualizar com bastante claridade esta promessa detrás da radical exigência de liberdade da modernidade. (...) O desejo de ser totalmente livre, sem a liberdade competitiva de outros, sem um a partir de nem um para não pressupõe uma imagem de Deus, mas de um ídolo. O erro fundamental de semelhante desejo radical de liberdade reside na idéia de uma divindade concebida como puro egoísmo. O deus concebido desta maneira não é um Deus, mas um ídolo. Certamente é o que a tradição cristã chamará de demônio, o anti-Deus, porque contém exatamente a antítese radical do verdadeiro Deus. O verdadeiro Deus é, por sua própria natureza, um ser-para (Padre), um ser a partir de (Filho) e um ser-com (Espírito-Santo). O homem, por sua vez, é precisamente a imagem de Deus na medida em que o a partir de, o com e o para constituem o padrão antropológico fundamental. Cada tentativa de fugir deste padrão não é um caminho para a divindade, mas para a desumanização, para a destruição do próprio ser mediante a destruição da verdade." E cita exemplos atualíssimos: "a liberdade de destruir a si mesmo ou destruir o outro não é liberdade, mas paródia demoníaca."

Mas o que mais me impressionou em todo o ensaio foi o fato do autor ter enfatizado em vários momentos onde se encontra a fonte da verdade: "a razão deve escutar as grandes tradições religiosas se não quiser ser surda, muda e cega precisamente perante o essencial da existência humana." E nesse outro trecho: "quando a verdade deixa de visualizar-se no contexto da apropriação inteligente das grandes tradições da fé, substitui-se pelo consenso."

Ao contrário da moda atual de vários blogs católicos e ortodoxos, o atual papa Bento XVI admite explicitamente que a verdade não se encontra unicamente no cristianismo, mas nas grandes tradições da fé. É claro que ele não considera o cristianismo uma religião como as outras, porque foi fundada pelo próprio Filho de Deus, mas consegue entender que é preciso conservar as outras tradições e protegê-las das deturpações políticas das quais também o cristianismo é vítima. É preciso frisar este ponto porque muitos que se consideram mais católicos que o próprio Bento XVI não compreendem este posicionamento e acabam por fechar os olhos a tudo que não sai diretamente do centro do cristianismo. Serei enfático e insistente: ouçam Bento XVI e abram a razão para as grandes tradições da fé.

8:40 PM

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