domingo, junho 19, 2005



por Adalberto de Queiroz



Fecho os Sermões de Vieira e abro o jornal diário. Melhor que não o fizesse. É uma troca imposta pelas manchetes da imprensa, um impositivo da realidade diária, pois que nos cobram atualidade nas conversas entre amigos, colegas de trabalho e parentes - esquecidos que somos todos do passado recente. É preciso, pois, que a crônica do cotidiano defina o tom dessas conversas mas não se esqueça do grande rio da história contínuo e caudaloso, que vai arrastando a todos os atores de primeira ou de segunda grandeza.

O cronista vê o caso dessas duas cartas que o diário exibe em manchete, após a queda do ministro José Dirceu, como o terreno próprio para que se exerça uma análise imparcial e se compare o episódio com o que deveria ser o comportamento esperado de personagens que fundaram seu discurso político sobre a sagrada palavra ‘esperança’, naturalmente, sem mostrarem entendimento sobre a verdadeira Esperança. O homem que cai é ‘peixe grande’ comenta um amigo. É o ex-guerrilheiro feito primeiro-ministro que fala ao operário feito presidente – movidos ambos pelo desejo de responder às acusações de corrupção que invadem o parlamento e as conversas diárias de toda a gente. O presidente aceita a demissão do ministro também em carta pública. Ambas as cartas viram de pronto material de mídia desde a origem, como se fossem escritas para ser publicadas, como num texto de ópera bufa, peças a conduzir a comunicação de toda a mídia, ansiosa por informação pronta, portátil, mastigada para um público ávido de informação que não exija nterpretação.

Não é sem razão que pensamos no nome do movimento em que os personagens dessa ópera bufa conduziram em toda a vida político-partidária: articulação. Para o leitor atento tudo está articulado para funcionar como uma grande máquina de marketing, em que se contrói e se descontrói. Lendo as cartas, os leitores encontrarão, aliás, a referência explícita à “tentativa de desconstruir a nossa história”, em que o autor da carta posa de vítima – como se estivéssemos diante de uma tese de marketing (demarketing ou unselling) e não de uma questão ética.

Mostra a prática republicana que estes que agora têm a responsabilidade de dirigir nunca estiveram tão desarticulados, em relação a uma série de questões de gestão do estado. Eis que tentam promover uma saída articulada do ministro todo-poderoso (plenipotenciário) em meio às enormes atribulações causadas pelas acusações de corrupção envolvendo “peixes grandes”, tão poderosos na República.

E onde estão os que deveriam imprecar contra os vícios e exaltar as virtudes?

Padre Vieira em seu sermão aos Peixes, cansado de tentar falar aos homens, dirige-se aos peixes, com o desconsolo de saber que “gente pode ser peixe que se não há de converter”. O cronista indeciso sobre o que dizer diante da ópera midiática, recorre ao pregador, desolado com a ausência de profetas na mesma terra em que pregava Vieira:

“Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa da corrupção? Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!”

Permitindo-nos comparar os homens aos peixes, ressaltando que estes são melhores ouvintes, Vieira primeiro exalta suas virtudes, para depois açoitar-nos os vícios, quando deita-lhes repreensão, como deveria este cronista sem inspiração pessoal repetir a seus parcos leitores: “grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior” e citando Santo Agostinho, repetir com Vieira: “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros”. Ou, ainda numa metáfora zoólogica poderia concluir com o pregador: ‘são piores os homens que os corvos’. Eis a carnificina que a realidade impõe ao cronista, diante do espetáculo dos atores políticos diante das câmeras de TV.

Como espectador dos atos encenados e a encenar, eis a conclusão: os corvos estão de novo soltos em nossa terra, digladiando por moedas de prata supostamente situadas em bocas de peixes pequenos, médios e grandes. A República se pergunta se alguém morrerá com o “alheio atravessado na garganta” como na história do peixe que São Pedro pesca com a moeda de prata presa à garganta.

Lembremos de Padre Antonio Vieira:

“Mandou Cristo a São Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este, suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe, e que seja ele o que morra primeiro que os demais?”.

Estais atentos, diz o pregador, “os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares...”

Felizes são os peixes, chega aos ouvidos do cronista, emulando a mais funda infância de sua filhinha, que lendo essas linhas mal costuradas, imagina o cronista como lançando as mesmas redes que o pescador inepto tentasse lançar ao mar de conhecimento em que navega. Infelizes são os homens, deveria essas linhas conter, posto que fundadas no mais exato sentimento de revolta e asco diante da realidade de seu país. Sim, revolta, asco que se unem ao sentimento de decepção e juntos dão a tônica dos dias atuais diante dos brasileiros que se dispõem à leitura do jornal diário... Melhor seria voltar ao velho e sábio Vieira e renunciar à articulação de tão perniciosa realidade.

12:33 AM

1 comentários:

at 10:22 AM Ruben David Azevedo disse...

Ao ler o vosso blog fiquei feliz por saber que a literatura portuguesa continua a florescer no Brasil. Verifico também que voçês têm um apreço especial pela discussão política e filosófica, partilhando a vossa indignação pela desinteresse cada vez mais crescente pelo pensamento e pela discussão cultural. Digo isto porque penso que só se atingirá um desenvolvimento pleno e completo da sociedade através do espírito, e da cultura.

Boa sorte