sábado, junho 11, 2005



por Fabio Ulanin


A reflexão a respeito de Santo Agostinho e suas Confissões exige não apenas um olhar puramente literário. O autor, fundador da visão medieval cristã, ao resgatar de Platão e de Plotino os conceitos filosóficos, faz, em sua autobriografia, mais do que a literatura: desenvolve todo um raciocínio de caráter metafísico que imprime em sua reflexão sobre o passado uma série de conceitos fundamentais para a efetiva compreensão de seu discurso. Não pretendemos, contudo, esmiuçar estes conceitos filosóficos, o que escaparia dos moldes de um texto breve como este que hora se apresenta. Pretendemos, apenas, refletir de modo simples, a respeito de alguns poucos conceitos do Bispo de Hipona para, a seguir, compreender melhor o que vem a ser, afinal, a sua autobiografia. Para tanto, utilizar-nos-emos não só de suas Confissões, mas de outros textos que, apesar de não apresentarem o caráter biográfico explícito (visto que sempre há algo do autor, alguma referência pessoal, ainda que não compreendida de imediato pelo leitor, na produção de uma obra), irão fornecer dados fundamentais para a compreensão de nosso texto-base; neste sentido, buscaremos n’A Cidade de Deus o conceito de tempo utilizado pelo Santo, assim como em outras obras de referência que possam nos oferecer dados para a compreensão do Tempo e da Memória.

O conceito de tempo se caracteriza por um processo que abandona o aspecto de continuidade ou mensurabilidade e relaciona-se a um outro conceito: o de simultaneidade, pois são dois os tempos que existem e interagem de forma absoluta, na visão cristã medieval, da qual Santo Agostinho é o inaugurador — o tempo dos homens, certamente medido pela hora canônica (o tempo dos mosteiros, que regrava e regia o labor humano), e o tempo de Deus, revelado por sua permanência e sua constância na consciência. O primeiro depende absolutamente do segundo; e o inverso não é verdadeiro. Como afirma Schuback:
“A expressão ‘tempo de todos os tempos’ quer indicar, de imediato, que a metafísica cristã da criação assume duas dimensões no tempo: um tempo no singular, único e inteiro e um tempo plural, múltiplo e diverso. O tempo singular, único, inteiro é a eternidade do Deus criador. O tempo plural, múltiplo e diverso é o tempo de toda realidade extradivina, de todas as criaturas.”[1]

Isto se dá pelo fato de que, sendo o homem fruto de uma ação criadora, ele traz em si todo um passado que determina suas ações; em outras palavras, há uma memória do princípio dos tempos, no qual Deus gera as coisas do nada, e que se projeta para o presente, afinal o homem só pode criar e produzir graças à sua condição de criatura. E, do mesmo modo, todas as suas ânsias e angústias em relação ao futuro são presentificadas – afinal o que acontecerá pode ser mistério para o homem, mas não o é para a suprema consciência divina. Isto se dá no que se refere à História – o que dizer no tocante à propria vida do homem? Em certa medida, o ser humano partilha com Deus esta essência tempora – a mem´ria, assim, é o intrumento capaz de levar o homem a reviver o seu passado, presentificando-o, ou a projetar o seu futuro, antecipando-o. Aliás, este mesmo conceito é percebido no Velho Testamento, seja nos livros históricos (I e II Reis, p.ex.) seja naqueles de caráter profético (Isaías, Oséias etc.).

Em Deus não há tempo: Ele é o próprio Tempo em sua eternidade, assim como é a própria Bondade, o próprio Amor, a própria Justiça. Ou, como afirma Tomás de Aquino[2], todos estes caracteres acima elencados não são atributos de Deus, mas a sua própria Essência e, enquanto aspectos essenciais do Criador, fazem parte de uma Verdade superior e suprema ressaltadas pela consciência absoluta que Ele possui. Desta forma, o tempo divino é um encontro radical de todo o tempo em um único momento – paradoxo aparente que ocorre em nossa consciência humana, marcada que está pela seqüencialidade. É, enfim, um eterno presente marcado por Sua consciência – o que significa que é, para nós, um mistério.

Este duplo aspecto temporal é claramente ressaltado por Santo Agostinho, ao demonstrar a existência simultânea das duas cidades – a terrestre e a celestial, o tempo linear e o tempo eterno – e, também, no momento em que ele explicita a importância da memória:

“Dessa riqueza de idéias me vem a possibilidade de confrontar muitas outras realidades, quer experimentadas pessoalmente, quer aceitas pelo testemunho de outros; posso ligá-las aos conceitos do passado, deles inferindo ações, fatos e esperanças para o futuro, e, sempre pensando em todas como estando presentes, ‘farei isto ou aquilo’, digo de mim para mim no imenso interior de minha alma repleto de tantas imagens [...] Assim falo comigo mesmo e, enquanto falo, eis que se tornam presentes, retiradas do tesouro da memória, imagens de tudo o que nomeei.”[3]

O que diz o Santo de Hipona é bastante claro: tornamos presentes, pela memória, toda a nossa experiência passada, assim como todo o nosso desejo em relação ao futuro (junto com todas as possibilidades de sua realização). Mas, parece, este raciocínio encontra-se com um outro aspecto que não é só o de uma psicologia meramente humana – é a própria História que está aí incluída, na medida em que, para o pensamento cristão, a vinda de Cristo é a realização de diversas profecias do período vetero-testamentário e da qual todo o futuro também deriva. Nesta medida, a interpretação do texto bíblico encontra lugar no conceito de tempo agostiniano, não mais pela memória individual, mas por uma memória coletiva presente, já, nos desígnios de Deus. O que significa que, na antigüidade hebréia, os profetas previam, para o futuro, a redenção de toda a humanidade por meio daquele que seria considerado o Cristo; e, igualmente, para os homens do período neotestamentário, aquelas profecias passadas, traziam em si uma verdade que acabara de ser revelada. Em outras palavras: o anúncio antigo projetaria, já para os profetas, a sua salvação (e por esta razão há a idéia de que Cristo desce aos Infernos para libertá-los) e, para os contemporâneos do Salvador, uma memória que reforça e justifica o seu caráter messiânico. Mas a projeção do futuro no presente não se encerra aqui: há uma nova profecia no texto bíblico, que marca agudamente a mentalidade do homem medieval – a Segunda Vinda do Apocalipse de João que também presentifica os horrores do fim dos tempos (humanos, notemos bem) assim como a redenção dos justos. É o tempo divino marcando intensamente o tempo humano, afinal “o tempo sucessivo e linear não pode medir a eternidade”[4].

Deste modo, compreende-se melhor a estrutura de memória que encontramos n’As Confissões. Santo Agostinho pretende relatar a sua história, desde a infância até aos 15 anos (I Livro), passando pelos dramas da adolescência dos 16 anos (II Livro), seu tempo de estudante, quando se envolve com o maniqueísmo e os prazeres do teatro e dos jogos circenses (III Livro), atingindo enfim a posição de professor de retórica (IV Livro), até chegar, a meio termo do volume (Livros V a VIII), no processo de conversão ao catolicismo. A partir deste ponto temos a referência ao presente, e não mais ao passado: é o momento da escrita que se revela, numa perspectiva puramente teológica: a preocupação do Autor já não é a de revelar a sua vida pessoal, mas a Vida atrelada intimamente ao caráter escatológico das escrituras (Livros IX a XIII). No entanto, nesta reflexão sobre o presente encontramos a preocupação com o futuro:

“Assim é, para que eu ‘alcance aquele por quem já fui alcançado’ e me desprenda da dissipação dos dias antigos, seguindo a Deus uno. Assim, ‘esquecendo o passado’, sem a preocupação das coisas futuras que passarão, e inteiramente ‘voltado para o que é’ eterno, ‘poderei caminhar para o prêmio da vocação do alto’, não na distensão, mas com desejo pleno; lá ‘ouvirei o cântico de teus louvores’ e ‘contemplarei a tua beleza’, que não tem começo nem fim. [...] Mas eu me dispersei nos tempos cuja ordem ignoro, e os meus pensamentos, vísceras da minha alma, são dilacerados por tumultuosas vicissitudes, até que eu purificado pelo fogo do teu amor mergulho em ti.”[5]

A relação é clara: o presente possibilita a união do passado com o futuro – um passado que deve ser abandonado para quem busca o caminho da Salvação (e as Confissões não têm outro objetivo senão o da conversão do leitor enquanto um testemunho da descoberta de um caminho salvífico) em direção ao futuro onde o tempo não mais existirá, pois ele será toda a eternidade. Impossível desvincular o caráter “engajado” do texto agostiniano de seu caráter literário. Mais do que uma autobiografia, o Santo de Hipona pretende presentificar pela palavra escrita os dois extremos da existência: o terreno, de sofrimentos e de busca e o futuro, da eternidade.

Referências Bibliográficas:

AGOSTINHO (1984). Confissões. São Paulo: Paulus.
AQUINO, Tomás de (1990). Suma Contra os Gentios. Vol. 1. Porto Alegre: Sulina.SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante (2001). Para Ler os Medievais. Petrópolis: Vozes

[1] SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante (2001). Para Ler os Medievais. Petrópolis: Vozes, p. 79.
[2] AQUINO, Tomás de (1990). Suma Contra os Gentios. Vol. 1. Porto Alegre: Sulina, pp. 45-67, passim.
[3] AGOSTINHO (1984). Confissões. São Paulo: Paulus, pp. 275-276.
[4] SCHUBACK, Op. cit., p. 89.
[5] AGOSTINHO. Op. cit., p. 356.

7:06 PM

0 comentários: