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quinta-feira, fevereiro 17, 2005
Conto Fantástico
por Flamarion Daia Júnior
Dona Júlia morava em uma cidade pequena, numa casa isolada, rodeada por altas árvores, que sendo muitas e maiores que a casa muitas vezes confundiam a visão dos pedestres, fazendo com que a casa passasse desapercebida, mesmo de dia. De noite, ninguém poderia perceber a diferença entre a casa de Dona Júlia e uma floresta densa, e se alguém soubesse disso sentiria apenas por tal fato um pouco de medo, seja pela dificuldade em perceber uma casa, seja porque tal casa, em si mesma sombria e assustadora, ficava ainda mais sombria e assustadora de noite. É sabido que a noite, com sua escuridão, tem o poder de aumentar a suscetibilidade do homem ao medo, por um lado, e de tornar mais assustador o que em si já é sinistro, do outro, de sorte que poucas pessoas no mundo teriam coragem de passar a noite na casa de Dona Júlia, embora ela mesma pouco tivesse de sombria e assustadora, em sua aparência. Ela era uma mulher de pouco mais de 40 anos, muito magra, muito branca, e com olhos azuis que davam muito mais a impressão de serenidade que de beleza, embora não deixassem de serem belos. Sendo solteira, deveria morar com a família, mas ela vivia só. Diziam que seu dinheiro vinha de duas fontes: seus contos, que publicava em jornais da cidade grande, e uma herança, que aplicada a juros lhe fornecia uma renda mensal. Nada que desse para viver com muito luxo, mas ela parecia muito satisfeita em ser independente e solitária.
Dona Júlia morava em uma cidade pequena, numa casa isolada, rodeada por altas árvores, que sendo muitas e maiores que a casa muitas vezes confundiam a visão dos pedestres, fazendo com que a casa passasse desapercebida, mesmo de dia. De noite, ninguém poderia perceber a diferença entre a casa de Dona Júlia e uma floresta densa, e se alguém soubesse disso sentiria apenas por tal fato um pouco de medo, seja pela dificuldade em perceber uma casa, seja porque tal casa, em si mesma sombria e assustadora, ficava ainda mais sombria e assustadora de noite. É sabido que a noite, com sua escuridão, tem o poder de aumentar a suscetibilidade do homem ao medo, por um lado, e de tornar mais assustador o que em si já é sinistro, do outro, de sorte que poucas pessoas no mundo teriam coragem de passar a noite na casa de Dona Júlia, embora ela mesma pouco tivesse de sombria e assustadora, em sua aparência. Ela era uma mulher de pouco mais de 40 anos, muito magra, muito branca, e com olhos azuis que davam muito mais a impressão de serenidade que de beleza, embora não deixassem de serem belos. Sendo solteira, deveria morar com a família, mas ela vivia só. Diziam que seu dinheiro vinha de duas fontes: seus contos, que publicava em jornais da cidade grande, e uma herança, que aplicada a juros lhe fornecia uma renda mensal. Nada que desse para viver com muito luxo, mas ela parecia muito satisfeita em ser independente e solitária.
Teresinha era quase o contrário de Dona Júlia. Tinha menos de 15 anos e vivia com a família. Era uma mocinha até bonita, mas suas formas ainda eram infantis demais para ser atraente. Sua família era pobre, por isso ela teve que interromper seus estudos para trabalhar na casa dos outros, e Dona Júlia era sua primeira patroa. Enquanto dona Júlia era uma mulher serena e fria, Teresinha era uma adolescente nervosa e agitada. Trabalhar naquela casa a fez ainda mais nervosa. As pessoas que a conheciam notavam que Teresinha passara a ter tremores nas mãos e a olhar em volta, meio assustada, sem nenhum motivo aparente. Teresinha teria gostado de deixar Dona Júlia e trabalhar em outro lugar, não por Dona Júlia em si, que nunca a maltratava, e sim pela casa, que lhe metia medo, mas não havia muitas alternativas para uma criadinha sem experiência nem recomendações. Além do mais, para seus pais era melhor ela trabalhar na casa de Dona Júlia, que vivia só, morava ali perto e não recebia v isitas, do que em outro lugar, onde sua filha poderia ficar indefesa diante de algum cínico mulherengo.
Na casa de Dona Júlia, longe das vistas de seus próximos, o comportamento de Teresinha era ainda mais esquisito. Muitas vezes, ao limpar alguma coisa em algum quarto sombrio, empoeirado e cheio de velhas bugigangas daquela casa silenciosa, Teresinha sentia medo. Sem motivo aparente, começava a tremer e a suar frio, tornando-se por algum tempo ainda mais pálida que Dona Júlia. Imaginava por algum motivo algum monstro, diabo ou fantasma houvesse a espreita, em algum canto, um ser cuja aparência medonha por si só fosse bastante para atormentá-la pela eternidade, sem mais necessidade de qualquer outra sevícia adicional. Era o Medo, e medo em estado bruto, que a nervosa Teresinha não entendia de onde vinha, nem porque. Quando isso acontecia a pobre parava tudo o que estava fazendo e se recolhia, paralisada, em algum canto. Isso durava poucos minutos até que a chegada providencial de Dona Júlia, que parecia adivinhar a ocorrência desses acessos repentinos de medo, a tirava de tal t ranse.
Dona Júlia aparecia calma e serena. Sua presença tranqüilizava Teresinha, e seu toque lhe devolvia a consciência. Dona Júlia alisava a cabeça de Teresinha, com calma, depois limpava suas lágrimas (porque Teresinha chegava a chorar de medo) com um lenço. Depois, lhe dava um rápido beijo na testa. Nunca deixava de olhar com ternura para Teresinha nessas ocasiões. Seu olhar parecia dizer a Teresinha "Eu sei, eu também já passei por isso". Logo Teresinha estava na cozinha, bebendo um suave chá, de gosto estranho mas mesmo assim agradável, tranqüilizada e também envergonhada de ter tido tanto medo sem motivo aparente, como uma menina de colo... Pouco depois Teresinha ficava boa o bastante para trabalhar, e procurava fazer seu serviço doméstico o melhor possível, um pouco por gratidão, um pouco para esquecer, concentrada em seu trabalho, suas angustias inexplicáveis. Era muito grata a Dona Júlia, e sentia que gostava muito dela, embora quase nunca conversassem, já que Dona Júlia er a uma mulher silenciosa e Teresinha não ousava aborrecê-la com suas bobagens de adolescente caipira. Logo seria hora de voltar para a casa de seus pais, e para Teresinha esse era um momento de profundo alívio - Ainda bem que não tinha que passar a noite lá!
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Dona Júlia escrevia prosa de ficção cujo tema era, principalmente, os terrores que atormentavam o homem. Histórias de fantasmas e monstros terríveis, de loucos criminosos obcecados em matar dolorosamente e grotescamente suas vítimas. De diabos que subiam do inferno a fim de espalhar a confusão e a angustia na terra dos vivos. De paixões profundas mas também funestas, que arrastavam homens e mulheres para o pecado, do pecado para o crime e do crime para o inevitável castigo e para a destruição. Historias que também falavam da beleza triste e serena de seres mortos, pessoas muito queridas cuja ausência irremediável provocavam dores incuráveis, por serem exclusivamente espirituais. História que refletiam sobre o triste fatalismo da morte, que nunca poderia ser agradável, apenas serena, na melhor das hipóteses, e do cruel destino de pobres desgraçados que nem mesmo no ato de morrer e nem mesmo depois encontravam paz para suas almas. É importante que se diga que na ficção de Dona Júlia os terrores nasciam de dentro do homem atormentado, mesmo quando assumiam uma forma exterior. As criaturas das trevas não fariam mal nenhum ao protagonista se este não tivesse, em sua psique, o que as atraiam, e seus personagens nunca deixavam de colaborar, de um jeito ou outro, com seu próprio sofrimento e no final com sua própria morte.
Dona Júlia não se via como uma simples escritora de contos fantásticos. Ela se considerava uma investigadora das trevas que rodeavam o homem e que poderiam, como muitas vezes realmente acontecia, embora as pessoas não o percebessem a não ser em raros casos e intuitivamente, envolver e finalmente destruir o homem se ele fosse leviano e perverso. Seus contos, portanto, não eram realmente ficção, pelo menos não totalmente, mas também registros e hipóteses profundamente meditadas sobre a vida do homem na terra, uma vida de riscos terríveis e ocultos, pela própria semente do mal, que estava dentro do homem e, da alma humana, atraia o mal. Os homens erravam em parte, portanto, ao atribuir aos seres monstruosos a culpa por sua monstruosidade, embora tais seres efetivamente existissem, porque a culpa primária estava dentro do próprio homem. Era o que dizia Deus, desde o principio: Que a terra é maldita e maldita por culpa do homem (Gênesis 3:17).
Dona Júlia descobrira sua vocação na adolescência, com a idade de Teresinha, mas durante muito tempo não teve coragem de escrever. Mas sempre fora atormentada por monstros, por visões pavorosas, por terríveis intuições, que a impediram de levar uma vida normal, e se tornou escritora de contos fantásticos por nunca ter sido capaz de pensar a sério em outro assunto.
Ela sabia que não haveria alternativa também para Teresinha.
A atmosfera assustadora da casa certamente impressionaria a qualquer pessoa, mesmo que não houvesse realmente seres monstruosos e imateriais rodeando Dona Júlia. Fantasmas vinham contar-lhe seus crimes e descreviam, entre lamentos, sua punição; demônios a ameaçavam e criaturas vampíricas procuravam, através do ar, sugar-lhe sua vontade, sua inteligência, seus sentimentos... Às vezes Dona Júlia os via. Sempre sentia sua presença quando eles estavam perto, o que era quase sempre. Ela era uma mulher instruída em assuntos ocultos e muita firmeza de vontade, de sorte que as criaturas do mal, os fantasmas, demônios, vampiros e outros monstros, pouco ou nada podiam contra ela. Mas com Teresinha, moça muito jovem e ainda ignorante de quase todos os assuntos da vida, e que tinha inata sensibilidade tanto para as criaturas imateriais, sensibilidade esta que aumentava em lugares sombrios e distantes das pessoas, era diferente, e não era outra a origem de seus surtos irracionais de medo, irracionais certamente, mas não infundados, como a mocinha ingênua imaginava.
Às vezes, ao terminar algum conto ou estudando algum de seus livros, Dona Júlia pensava no futuro de Teresinha. Depois de adquirir alguma prática na casa de Dona Júlia, ela receberia uma proposta de trabalho em outro lugar, e aceitaria, crendo com isso resolver suas angustias. Inutilmente se afastaria da casa de Dona Júlia, pois o fato é que tendo convivido e percebido as criaturas do mal os dons ainda não plenamente desenvolvidos mas mesmo assim profundos de Teresinha a levariam a ter repetidos surtos de medo, ansiedade e depressão, uma vez que a breve experiência na casa de Dona Júlia bastara para sua sensibilidade se exacerbar por toda a vida. Dona Júlia não regatearia referências nem seria sovina ao acertar as contas com Teresinha, uma vez que sabia que ela voltaria a procurá-la, única pessoa capaz de entendê-la e aliviá-la.
Depois, os pais de Teresinha morreriam, e ela passaria a viver definitivamente com Dona Júlia, que seria como uma mãe para ela, cuidando inclusive da s lacunas em sua instrução. Depois, a própria Dona Júlia morreria, e Teresinha continuaria sua obra, escrevendo contos fantásticos, estudando ciências desconhecidas para a maioria da humanidade, assinando livros com seu nome completo, Teresa Mendes, e vivendo uma vida solitária até ter a sorte (porque isso estava longe de ser uma garantia) de encontrar uma pessoa com a mesma capacidade de intuir a presença do mal e escrever sobre ele, fazendo da descrição e da análise uma maneira de controlá-lo, semelhante ao domador de feras selvagens cujo medo dos animais diminui com a familiaridade e com o controle.
2:45 PM