quinta-feira, março 31, 2005


por Fabio Ulanin

Estas são as considerações que eu faço, e era bem que fizessem todos, sobre os juízos ocultos desta tão notável transmigração e seus efeitos. Não há escravo no Brasil - e mais quando vejo os mais miseráveis - que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que Creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança como os demais, os predestinasse para dois infernos, um nesta vida, outro na outra (Pe. António Vieira, Sermão XXVII da série "Maria, Rosa Mística")



Estamos em plena escravidão. O mais terrível, o mais absurdo, o mais absoluto terror escravocrata nos ronda e nos cerca, sussurrando palavras doces para fazer-nos dóceis. Somos Schiavos em potência, prontos para que se nos retirem os tubos de alimentação que nos mantém vivos. Somos dominados pelo mais terrível senhor de engenhos que já se teve notícia: a argumentação cientificista que se pretende detentora de um saber absoluto. O que, cá entre nós, é uma contradição: estes mesmos senhores afirmam com todas as letras a relatividade de todas as coisas, já que tudo, absolutamente tudo, depende apenas do meu, nosso, ponto de vista individual e intransferível. Somo Schiavos presos a camas, um tubo enfiado não em nossa barriga, mas em nossos cérebros – e um tubo não para nos alimentar, mas para extirpar aquela parcela que nos faz melhores que alfaces: a alma. Um Schiavo não é humano. Isso já era fato conhecido lá pelos idos do século XVI e arrastou-se até o século XIX, pelo menos, como verdade apoiada por todos os que se consideravam inteligentes e doutos.

Ser Schiavo é estar à margem, sem poder de argumentação. É não poder, não conseguir, por não lhes ser permitido, pensar livremente. É ter de obedecer às regras e às normas impostas pela simples vontade de outrem. Ser Schiavo é ter a vida dominada pela vontade alheia – e ser colocado num tronco erístico para apanhar com chicotes conceituais: e sangrar sangue verdadeiro sob os golpes de falsos argumentos. É banal: um Schiavo pode fugir de seu algoz, esconder-se embrenhando-se na mata, fundar uma comunidade de Schiavos seus irmãos – e ainda assim, será, sempre, um escravo. Será caçado, nunca banido; será preso, nunca liberto; será morto, nunca respeitado.

O Schiavo é o menor dos seres, por isso o maior dos entes. O Schiavo atravessa o deserto em busca de sua terra prometida – mas a promessa da vida, e da vida abundante, foi calada pela voz dos senhores, dos novos detentores do poder sobre a vida. Nietszche tinha razão: Deus morreu e fomos nós que o matamos – e quando matamos a Deus, temos a liberdade imoral de imolar nosso semelhante sem sentimento de culpa.

E lemos e ouvimos e pronunciamos todos os argumentos do mundo em favor da morte do nosso irmão. Um embrião não tem vida – logo, arranquemo-la com nossas mãos; uma mulher depende de aparelhos para se alimentar – logo decidimos que aquilo que ali vemos não é uma vida digna, e desligamos os aparelhos e deixamo-la morrer aos poucos, de fome, definhando. Quem argumenta dessa forma só pode ter uma atitude coerente: ser favorável aos horrores de Hitler, já que a vida de um judeu vale menos que a de um ariano. Quem defende o aborto e a eutanásia deve, por coerência moral, apoiar os campos de concentração e os fornos crematórios. Não há meio termo. Quem vê no ser um Schiavo não pode se chocar com o assassinato puro e simples sobre os quais temos notícias todos os dias na tv: matar é uma decisão válida, porque individual e relativa; não pode sequer criticar os donos das terras que matam líderes sindicais ou os membros do eme-esse-tê; não pode lamentar os famintos de África nem os fuzilados por Saddam; não tem o direito de erguer sua voz contra a guerra; não pode exigir justiça quando seu filho for assassinado.

Não percebem o mais óbvio, o mais simples, a mais reles das verdades – aliás a única Verdade: somos todos Schiavos à espera de que se nos retirem os tubos.

Mas o verdadeiro Schiavo é aquele que, mesmo sem dizer nada, apela, silencioso, pela Vida.

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segunda-feira, março 28, 2005


por Maurício Amaral

Há uma piadinha acadêmica que diz que o arquiteto é o sujeito que não foi homem o suficiente para ser engenheiro nem veado o suficiente para ser decorador. Lembrei disto, por associação, esta semana enquanto esperava o meu carro ficar pronto na oficina.

Como de costume, lancei mão das revistas à disposição na sala de espera, várias Contigos e Caras. Eis que em uma delas estava lá uma frase de Arnaldo Jabor, afirmando que o homem não conhece o verdadeiro amor, a não ser quando o perde, de forma que, segundo ele, “só os cornos amam de verdade”. Levando em consideração a quantidade e qualidade das asneiras já proferidas pelo autor, não cheguei a ficar chocado. Ao contrário, a idéia só poderia mesmo ter saído dele ou de um Gerald Thomas da vida.

Sobre a existência televisiva do Jabor, aliás, nunca entendi a justificativa. Sim, porque o seu papel de palpiteiro catedrático no Jornal Nacional, Manhattan e toda sorte de programa de entrevistas, deveria estar pretensamente respaldado por algum feito artístico ou acadêmico. Não que isto seja algo positivo, na maioria das vezes é o contrário. Mas é assim que funciona. Por exemplo: atualmente, uma das grandes autoridades em moral, segurança pública, política internacional e direito penal (além de outros temas) é o Adriano. Não sei o sobrenome, mas é o Adriano. Aquele que participou de um Big Broder qualquer e, por isto, tornou-se uma voz a ser ouvida (ainda outro dia ele opinava sobre o julgamento de Michael Jackson em um programa na Bandeirantes). No caso do Jabor, a única coisa que se levanta em sua defesa e por causa da qual ele é denominado “cineasta” é “eu sei que vou te amar” um filme tão ordinário que provavelmente até o Adriano se negaria a comentar. Conta a lenda que há outros filmes, tenho cá minhas dúvidas. E, a julgar pelo mais famoso, não perderia meu tempo.

Mal sabia eu que pior do que a leitura na sala de espera seria a conta a ser paga pela troca da bomba de combustível. Por isto ainda tive tempo de lembrar dos trejeitos na fala do Jabor, e a sua ridícula tentativa de imprimir ao seu texto (o sujeito ainda escreve!) um estilo sarcástico. Então compreendi o seu segredo: ele não foi homem o suficiente para ser Paulo Francis nem veado o suficiente para ser Glauber Rocha.

terça-feira, março 22, 2005


por André de Oliveira

O senhor Janer Cristaldo, ateu convicto desde os 17 anos, resolveu aprofundar seu ateísmo: tornou-se ateísta militante e anticristão. Imagino que tamanho progresso tenha sido fruto de uma demorada reflexão, que deve ter consumido todos os seus neurônios e colocado as sinapses em curto-circuito, porque, depois disso, não é mais capaz de distinguir uma maçã de um quiabo. Seu único mérito é conseguir publicar toda essa baboseira num site que faz questão de se gabar de ser um dos poucos a denunciar perseguições a cristãos no mundo inteiro. É realmente um assombro.

Mas, como dizia, o jornalista já não distingue uma maçã de um quiabo. E provo: confunde as declarações do papa com as de um imperador mundial, que deseja impor sua vontade ao mundo inteiro. E mais, advoga para o sumo pontífice um tribunal civil com punições escritas no Código Penal. O interessante é que, antes de redigir este brilhantíssimo argumento, refutava os católicos que lhe escreveram alegando que aborto é crime, ressaltando que só é crime o que está no Código Penal – e está! – sem se ater ao fato de que o papa não cometeu um único delito previsto na lei em seus pronunciamentos.

Como todo bom anticristão, não esqueceu da Inquisição. Colocando-a no ponto mais alto da doutrina católica, identificou como sentimento cristão todo e qualquer desejo de que o inimigo queime no fogo do inferno, para parecer engraçadinho. Declarou que prefere o demônio a Deus, porque este humilha enquanto aquele apenas seduz. Pelo jeito, nunca leu o Novo Testamento, porque ninguém diria isso após triscar os olhos nas descrições das humilhações que o próprio Deus feito carne aceitou sofrer para salvar os homens, inclusive o senhor Cristaldo. Quanta gratidão!

Um dos pontos mais fortes do teatrinho é quando o supremo guru do Anticristo se irrita profundamente com a afirmação do papa de que a democracia não pode ser entendida como um valor em si, desligada da lei de Deus. Ora, por que tanta irritação com quem está tão distante? Por que não direciona sua cusparada ao editor do site que publicou suas tolices, já que, não é de agora, concorda com o papa neste ponto, deixando sua posição bem clara, tanto em seus artigos de jornal quanto no livro O Jardim das Aflições?

Seria porque é mais fácil criticar quem não pode responder? Seria porque sua filosofia chinfrim não daria nem para o começo num debate aberto com Olavo de Carvalho? Não sei e nada posso afirmar. O que sei é que é preciso muito pouco conhecimento histórico para não saber que a moral é um legado religioso. Sem religião, perde-se a moral e, sem moral, a democracia é apenas nominal.

Há os que afirmam que o Janer é bom nisto e naquilo e que discordam dele apenas neste ou naquele ponto. Não penso assim. Suas críticas à esquerda poderiam ser escritas por qualquer outro liberal. Não fazem falta. E sua visão de mundo em tudo o mais é tão ridícula quanto seus últimos escritos para o Mídia Sem Máscara, incluindo sua indevida intromissão na discussão sobre Einstein e Poincaré, risível para quem quer que já tenha estudado o assunto.

Assim como o Janer não simpatiza com o papa, também nunca simpatizei com ele.

sexta-feira, março 18, 2005

Conto Fantástico

por Flamarion Daia Júnior


Em minha casa tenho uma bela pintura de um cemitério durante o dia. Esse quadro me foi presenteado por meu amigo Saul Gonzaga, que o herdara de seu pai - e eu não sei de quem o pai de Saul o obteve, mas não há duvida de que o quadro foi pintado séculos atrás, provavelmente no tempo de Rembrandt, ou um pouco antes. O céu é bem azul, a grama é bem verde e as cores foram trabalhadas com maestria, de modo que, no horizonte, como é exibido no quadro, o encontro imaginário entre a relva e o céu parece ser o encontro desse mundo com o outro. Entre os túmulos há algumas árvores retorcidas, sem folhas, negras e sinistras, como guardas em posições ameaçadoras. No céu há uma pequena nuvem cinzenta que se destaca no fundo azul claro, ameaçando chuva – e para mim a nuvem simboliza, justamente, uma espécie de ameaça.

Eu coloquei este quadro em minha parede, em um canto obscuro, para não ter muito destaque. Entre muitos quadros, ele quase não aparece para um observador desatento. Prefiro assim. Eu o contemplo às vezes, encantado com sua beleza e também tentando decifrar os mistérios que estão por trás dele. Em tais ocasiões a contemplação dura horas.

Em minha casa, desde que o quadro está lá, eu vejo também, em certas ocasiões, uma bela mulher, que também me assusta. Em certas ocasiões, ela presta atenção em meus traços, como se eu estivesse posando para ela. Outras vezes, ela está examinando para os quadros da minha pinacoteca, com seu olhar de especialista. Às vezes ela balança a cabeça em sinal de desaprovação. Quando isso acontece vendo o quadro examinado por ela logo que possível. Folgo em dizer que tais ocasiões são raras e que ela deve se sentir muito feliz com meus quadros por companhia.

Também em certas ocasiões e desde que tenho o quadro eu sinto uma estranha corrente de ar, fria, gelada mesmo, que não pode vir das janelas de minha casa. Hesitei muito antes de admitir a possibilidade de tal corrente vir do quadro, o que só fiz depois de alguns eventos que em si mesmo podem ser inexplicáveis, mas que devo aceitar como reais por serem a explicação de fenômenos maiores. Eu não sei se isso é um bom sinal, um mau presságio, ou algo que acontece, como uma tempestade de neve pode muito bem acontecer no pólo norte, e sem maior influência no meu destino do que essa hipotética tempestade de neve no pólo norte possa ter, por exemplo. Mas talvez seja melhor deixar o leitor julgar e seguir com a narrativa, explicando, ou tentando explicar, as origens de tais fenômenos.

Saul Gonzaga era um muito querido amigo, o único que eu considerava capaz de conversar comigo sobre arte. Assim como eu ele tinha uma pinacoteca com muitas pinturas, e nosso maior prazer era admirar e comparar os quadros um do outro, sempre falando de arte. Não havia entre nós nenhum tipo de rivalidade, como acontece com outros colecionadores, não só devido a nossa grande amizade como também porque nossas preferências dentro da pintura eram diferentes, de modo que colecionávamos obras de escolas e estilos distintos, e assim o acervo de um complementava o do outro. Ele era pelo menos 15 anos mais velho do que eu, o que em grande parte explica porque ele tinha, na época, muito mais experiência com leiloeiros e vendedores. Suas lições muito me ajudaram, e ainda ajudam, pois afinal continuo a comprar bons quadros.
Eu não me lembro exatamente quando foi que vi o quadro com que depois meu amigo me presenteou, mas deve ter sido quando eu conheci a pinacoteca do Saul ou logo depois. Por vezes, ao visitá-lo, e me encaminhar para a pinacoteca, eu o via absorto, concentrado no belo mas um tanto sinistro quadro. Sempre tive essa opinião, que atribuía ao fato do quadro representar um cemitério e, mais tarde, à expressão aflita de meu amigo ao contemplar a obra. Provavelmente Saul percebia isso, quando interrompia sua contemplação e notava minha presença, e então ele logo se punha a falar dos outros quadros e outros assuntos.

A mulher que eu mencionei anteriormente eu também conheci na casa de Saul Gonzaga: Uma bela mulher a contemplar os quadros de Saul. Loira e de belo porte, delgada e altiva, eu a via um segundo e ela desaparecia no segundo seguinte, me deixando confuso, curioso e assustado. Eu cria, na época, que ela fosse mero produto da minha imaginação demasiada fértil, uma alucinação provocada provavelmente pelas belas imagens daqueles quadros, e não comentava isso com ninguém. Mas devo dizer que junto com o quadro isso contribuía para que eu por vezes me sentisse um tanto assustado e aflito, sem motivo aparente, na pinacoteca de Saul.

A relação entre eu, Saul e o quadro se manteve assim por vários anos. Ele já estava velho e eu já era um homem maduro quando ele me deu o quadro. Saul me explicou que, sendo aquele quadro era um objeto pessoal e não um imóvel ou um investimento, ele poderia dá-lo a mim sem maiores problemas, o que não seria o caso dos demais, pois eles estavam catalogados como peças de sua valiosa pinacoteca e muito incomodaria seus herdeiros se Saul me desse alguns deles. Haveria então uma ação judicial que eu, provavelmente, perderia. Mas aquele quadro não estava catalogado como parte da coleção e, além disso, era uma herança que nunca tinha sido avaliada por um perito, de forma que ele poderia presentear-me com ele sem a ameaça de qualquer tipo de processo.

A principio eu nada vi além de amizade naquele gesto. Considerei apenas um presente, sem maior significado, e me senti sinceramente agradecido. Mas eu estranhei quando, respondendo a uma pergunta que já não me lembro qual mas que era uma pergunta relacionada com o quadro, Saul me disse num sussurro onde eu não reconheci sua voz:
- Estou envelhecendo...

E, mais do que o sussurro, a expressão de Saul me preocupou. Era uma expressão difícil de definir, meio triste e meio assustada. Talvez também um pouco resignada. Mas era óbvio que ele não esperava nada de bom. Claro que perguntei se ele estava bem, e essas bobagens que nos ocorre perguntar quando sentimos que um amigo tem seus problemas e não sabemos de que natureza tais problemas podem ser, mas Saul foi muito evasivo e lacônico. Senti que o aborrecia e não insisti mais.

O quadro do cemitério entrou, assim, em minha casa, passando a ser parte da minha pinacoteca, mas eu não o coloquei de imediato em minha parede. Minha intenção era que o quadro tivesse um lugar de honra, pois um quadro era muito belo, malgrado as sinistras e indefinidas impressões que ele me despertava. Eu o deixei a parte, portanto, decidido a procurar o melhor lugar para ele na primeira oportunidade.

Também foi aquele o primeiro dia em que vi a mulher em minha casa, ou talvez fosse melhor dizer o seu espectro. Ela me apareceu sentada em uma de minhas poltronas, e como sempre desapareceu no instante seguinte, como se alucinação fosse. Assustei-me a princípio, mas logo recobrei a serenidade e, rindo de mim mesmo, pus-me a pensar no que a mulher poderia estar fazendo. A resposta que me ocorreu foi que ela estaria analisando minhas feições e meu corpo. Mas não pude realmente imaginar porque ela estaria fazendo isso. Eu nem mesmo poderia explicar a existência ou não dela. Mas intui que ela deveria ter alguma coisa a ver com o quadro. Só não conseguia imaginar o que.

Eu não me lembro se foi no mesmo dia ou no seguinte, mas eu tive um horrível pesadelo. Sonhei que eu estava no cemitério que o quadro mostrava, em um cortejo triste e silencioso que acompanhava um caixão. Todos estavam de preto e eu não reconheci ninguém. Eu senti vontade de chorar, pois me sentia triste por estar naquele cemitério, naquela hora, e pensava na fragilidade do ser humano, e em como é fácil perder a própria vida. Pensava também em como o cortejo apareceria se um artista de talento o retratasse, e lamentei que eu mesmo não tivesse condições de pintar nada que não fosse ridículas aquarelas amadorísticas.

Segui o cortejo até a tumba preparada para o caixão. Havia um pastor protestante, totalmente vestido de preto, e várias pessoas estavam a chorar. Alguns dos presentes me olhavam com simpatia, mas eu continuei sem reconhecer ninguém. Então eu me aproximei da tumba e li o que estava escrito: SAUL GONZAGA - PAX. Nesse instante, acordei, agitado e nervoso. E ainda deitado na cama eu vi a mulher de minhas alucinações a pintar e retocar o quadro que Saul Gonzaga tinha me dado. Ela estava concentrada, com um pincel na mão. Sem olhar para mim, se confundia com as pinturas que enfeitavam a parede, e eu não saberia dizer realmente, naquele momento, se ela era ou não uma figura real ou imaginária. Quando forcei a vista para perceber os detalhes da visão, ela tinha desaparecido. “Mas o quadro está na caixa”, eu pensei, e realmente, ao abrir a caixa, eu vi que o quadro ainda estava lá. Mas isso não diminuiu a certeza absoluta de que a mulher tinha realmente acrescentado ao quadro um detalhe, e eu o larguei, com medo de fitá-lo.

Eu abri uma garrafa de conhaque, pois precisava de alguma coisa que me desse coragem e só havia a disposição a bebida. Minha curiosidade era imensa, mas meu medo era maior e assim permaneceu enquanto eu não bebi metade da garrafa. Estava pálido, e tremia. Mas era necessário que eu examinasse o quadro, o que eu não teria feito sem a ajuda da bebida. Peguei o quadro do chão e, para ter uma visão melhor, acendi todas as velas de um candelabro e coloquei o quadro na parede, em lugar de outro. Mirei-o por várias horas. Examinei cada detalhe, como se fosse a primeira vez que via o quadro. Contei cada galho ressecado de suas árvores negras, e contei cada tumba novamente, concentrando-me na visão como se pudesse ler os nomes indecifráveis escritos naquelas lápides, e poucos minutos depois eu sofri um abalo, que me obrigou a sentar numa cadeira, e logo depois me fez procurar mais bebida, até que esvaziei as duas garrafas de conhaque que tinha em casa. Naquele momento, como até hoje, passei a ter absoluta certeza que surgira uma lapide a mais no cemitério. Sim, eu tinha certeza disso: uma lapide a mais, em um canto um tanto afastado, junto a uma das árvores ressecadas do cemitério, exatamente como eu vira em meu sonho.

A impressão que me causou esta descoberta, somada aos efeitos da bebida, me deixou totalmente alucinado e impressionável, a ponto de me acometer uma grande crise de choro. Creio que tanto chorei que cheguei a beber minhas lágrimas junto com o conhaque, pois passei a ter certeza, sem nenhuma base racional, que meu amigo Saul Gonzaga estava morto. Certamente poderia me consolar, considerando que o que tinha visto era uma base muito fraca. Eu poderia ter me enganado, até por estar bêbedo e por ter acordado depois de um sonho ruim, e por ser uma pessoa de natureza neurótica e impressionável. No entanto, eu não pensei em nada disso e se me fosse possível ouvir uma pessoa argumentar assim eu a repeliria, pois eu tinha certeza absoluta que meu amigo Saul Gonzaga estava morto, tão certo quanto se em vez de uma visão distorcida e um pesadelo eu tivesse sido informado por todas as pessoas confiáveis do mundo, e só me restava, então, chorar, e chorar como um bêbedo louco, o alucinado em que me transformara.

Passei o resto da madrugada e todo o dia seguinte bebendo (pois tinha comprado mais bebida, além das que já tinha em casa) e chorando, a ponto de preocupar algumas pessoas de minha intimidade. Eu só vim a desfalecer depois de um dia e algumas horas. Eu não conseguia articular palavras racionais, pelo que depois me contaram, e ninguém entendia o transe em que me encontrava. Felizmente, pois temo que me achariam louco, ou então tremeriam por sua vez de terror, sobretudo depois de terem a confirmação da notícia da morte de meu amigo, que tive naquela mesma semana. Ele morrera em uma viagem. Aparentemente teve um infarto depois de um jantar. Morrera no mesmo dia em que eu tive o maldito e profético pesadelo, antes que eu dormisse e sonhasse com seu enterro. Minha angustia era correta e acertada, portanto, e meu sonho não me enganara, e eu estava certo em acreditar em sua morte, como eu sempre soube, mesmo quando não havia para isso nenhuma base lógica. Mas eu não podia pedir que ninguém confiasse em mim se mostrasse a mudança no quadro, com uma lapide a mais no cemitério, o que provaria a existência de fenômenos inexplicáveis, porque eu era o único que sabia como era o quadro antes da alteração que o fantasma da mulher loira fizera nele, já que eu era o único que conhecera o quadro antes que dentro dele acontecesse o enterro do meu querido amigo. Todos os que tinham examinado o quadro além de mim estavam mortos, a começar pelo próprio Saul Gonzaga.

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Recebi por essa época uma carta póstuma de meu amigo. Ele a tinha escrito, com instruções de só me entregarem depois de morto, e tinha especificado bem que só eu poderia ler a missiva. Nesta carta, em resumo, ele me contava o que sabia do quadro: Que este fora pintado séculos atrás, representando um cemitério vazio. Mas seus donos, uma vez mortos, eram simbolicamente enterrados lá. O pai de Saul o tinha recebido de um amigo cujo nome Saul desconhecia. Mas como poderiam ser enterrados, mesmo simbolicamente, os donos do quadro dentro do próprio quadro? Saul, ao fazer algumas pesquisas, descobrira uma estranha lenda que dizia ser o autor do quadro uma mulher desconhecida. Essa mulher, muito bela, teria sido condenada por feitiçaria no século XVI ou XVII, e aparecera como um espectro na casa do juiz que a mandara para fogueira. O fantasma enlouqueceu o juiz, que terminou sua vida como prisioneiro de um asilo, amarrado junto a uma parede, alternando gritos medonhos com crises de choro.

O quadro deveria ter sido destruído, mas foi roubado por um colecionador, impressionado por sua beleza estranha. Este colecionador foi o primeiro homem a ser enterrado simbolicamente no cemitério. Deixou a seus herdeiros uma rica e bela pinacoteca, que criara, aparentemente, com a assistência do fantasma que por vezes aparecia para retocar o quadro. Sempre houve, entre os homens, pessoas que se consolam das misérias deste mundo e das angústias do outro através da arte. E sempre houve obras de arte que podem ser adquiridas por pouco dinheiro por pessoas com sensibilidade bastante para reconhecê-las.

Esta sensibilidade, aliás, é condição para que alguém tenha o quadro. Um espírito tacanho e indiferente à beleza certamente o destruiria, assustado com suas qualidades sobrenaturais, e o resultado seria que suas angustias piorariam e muito, levando o filisteu à loucura, pois a pintora, obcecada pela obra mesmo depois de morta, não hesitaria em se vingar desse ultraje. Por isso os donos do quadro sempre evitaram que este caísse em mãos erradas antes de morrerem, como Saul Gonzaga tinha feito, ao me presenteá-lo.

Felizmente, e isso talvez se deva a influência do fantasma, os donos do quadro sempre encontram pessoas capazes de admirar a profunda ainda que sinistra beleza da pintura, o que não só é tranqüilizante como ainda é oportunidade de um convívio muito agradável. Eu tenho tido a sorte de ser muito amigo de meu futuro genro, namorado de minha filha, uma mocinha muito prendada e disciplinada, ainda que sem sensibilidade para a arte, o que não considero obrigatório para todas as pessoas. Só para àquelas com quem desejo travar amizade, como é o caso de meu genro. Ele inclusive tem uma pequena e bela pinacoteca, e a diferença entre nossas idades é só um pouco maior da que havia entre mim e Saul.

Eu sonho eventualmente com o cemitério retratado pelo quadro. Lá está a tumba de Saul Gonzaga, ao lado de várias lápides de nomes indecifráveis. A tumba de Saul Gonzaga é a mais bem cuidada do cemitério, pois eu comprei para o quadro uma rica e bem feita moldura. E quando coloquei o quadro na moldura o efeito foi tão satisfatório que me atrevi a exigir, em pensamento, que o fantasma da bela pintora retribuísse o favor e pintasse para meu amigo a melhor tumba que pudesse. Em meus sonhos tenho tido ao menos o prazer de ver que, apesar do terror que o quadro possa provocar-me eventualmente, esse meu desejo é atendido.

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segunda-feira, março 14, 2005

por Fabio Ulanin
A morte é outro aspecto central no romance, também pautada no comportamento estóico. Pôncio Velútio Módio suicida-se entre escombros de sua casa, demolida para a construção de uma muralha de proteção para a cidade; Clélia morre queimada pelo mouros que cercam Tarcisis; Máximo Cantaber morre ao tentar resgatar o corpo de Clélia; Iunia é condenada à morte. Todos morrem, de alguma forma, pelas ações – ou ausência de ações – tomadas por Lúcio Valério: as suas decisões são as que desencadeiam o fim. Mas, levando em consideração o que acabamos de dizer a respeito do conceito de espiritualidade estóico, a morte não representa grande drama – apenas o fim do sofrimento de uma vida; e, se não há, na filosofia acima descrita, preocupação com a alma após a morte corporal, igualmente ela é vista de forma natural, pertencente ao desenvolvimento e às mudanças naturais. A única personagem de quem “não se tem mais notícias”, já ao final do romance e pelas próprias palavras do narrador Lúcio, é Iunia, que teria seu julgamento confirmado em Roma. Não se ter notícias pode ser, aqui, uma representação simbólica deste futuro incerto para a alma cristã.

Este breve esboço do conflito entre a visão estóica romana e o cristianismo que surge não estaria completa se deixássemos de discorrer, ainda que brevemente, sobre os frutos destas formas de ver o mundo. Para o estóico, o afastamento dos bens materiais é necessário, na medida em que eles não representam o verdadeiro valor da vida. A matéria é apenas um mal necessário para a racionalização e, neste sentido, comer pouco, beber o suficiente, dormir apenas o necessário, são comportamentos que servem para que o homem olhe para aquilo que realmente interessa: a filosofia, a razão do mundo e da natureza. O estoicismo é uma filosofia da não-ação: não agir é a melhor forma de se conquistar a sabedoria e o conhecimento. Esta uma posição defendida pelo estóico Sêneca: abandona o Senado do Império, retira-se para sua vila afastada de Roma, e ocupa o seu tempo com a única função digna de um homem: pensar[1]. Pensar e ler, afastado das preocupações cotidianas, da esfera política, dos jogos de favores; em poucas palavras: aproveitar o tempo, que é incerto, sem planos futuros, sem esperanças alimentadas. Lúcio Valério, neste sentido, encontra-se numa encruzilhada: por um lado alimenta a admiração por Marco Aurélio, tenta seguir seus passos e seus conselhos; deseja, igualmente, tratar com justiça as questões políticas de Tarcisis, cedendo a cada um o que é considerado correto (mas acaba por ser aclamado tirano da cidade, envolvido numa trama política da qual não quer fazer parte). No entanto, todas as suas ações, tudo o que acontece sob a sua gestão no duunvirato, é resultado de sua incapacidade de firmar sua vontade – ou afirmá-la, o que é o mesmo; assim, Lúcia acaba como vítima se sua própria inação.

O cristianismo, centrado em Iunia, apresenta o comportamento oposto. Ao cristão não é dada a permanência, mas a ação e a decisão constantes, a luta pela conversão do outro, seguindo o preceito evangélico de ir a todas as terras levar a palavra. O cristão é móbil por excelência. E seu saber pauta-se essencialmente em um único livro – na revelação da Palavra Divina. Esta ação, esta extrema mobilidade, esta obrigação que o cristão carrega é, para o estóico, uma perturbação da ordem natural das coisas – e, como vimos, se a natureza é a própria razão de ser, perturbar esta ordem significa agir contra a razão.

Outros elementos poderiam – e deveriam – ser tratados neste breve esboço. A questão política, igualmente fundamentada no estoicismo, com seus conflitos específicos, nos encaminharia por um novo rumo analítico – Rufo, trabalhador braçal que ascende a alta posição política em Tarcisis, e seu confronto com Lúcio é representativo deste fim de império. A interferência militar dos “bárbaros” mouros e a presença de uma comunidade judaica na cidade nos oferece outro caminho possível. A visão estritamente religiosa dos rituais romanos e cristãos poderia nos elucidar outras tantas questões. Por ora, no entanto, permaneceremos com a questão estóica.

Questão que, aliás, tem pleno sentido no romance: se para o pensamento de Lúcio tudo flui interminavelmente, tudo se transforma de modo natural, o que mais esperar senão a mudança definitiva de Tarcisis? A destruição da cidade e a implantação do cristianismo. Este o confronto essencial que encontramos: entre estóicos, romanos da plebe, mouros, lusitanos e cristãos é gerada a identidade de um povo: o povo que virá a ser, dali a séculos, o português.
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[1] Em suas Cartas a Lucílio (Lisboa : Calouste Gulbenkian, 1991), Sêneca escreve ao amigo, antigo companheiro de articulações políticas no Senado: «Reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era subtraído, que te fugia das mãos » (p.1) e, ais adiante, «Como é estúpido fazer planos para uma longa vida quando não se é sequer senhor do dia seguinte ! Como são insensatos todos quantos formulam esperanças a longo prazo : hei-de comprar, hei-de construir, hei-de emprestar dinheiro e cobrá-lo com juros, hei-0de fazer carreira na política (...)» (p.554).
Referências Bibliográficas

AURÉLIO, Marco (2001). Meditações. São Paulo: Martim Claret.
CARVALHO, Mário de (1994). Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. Lisboa: Caminho.
MORA, J. Ferrater (2001). Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola.
REALE, Giovanni (1994). História da Filosofia Antiga – Volume 4. São Paulo: Loyola.
SÊNECA, Lúcio Aneu (1991). Cartas a Lucílio. Lisboa: Calouste-Gulbenkian.

sexta-feira, março 11, 2005

por Fabio Ulanin
O que faz um romance histórico? Pergunta melhor: quais os aspectos principais que compõem a narrativa para que esta seja considerada histórica? A resposta pode parecer óbvia: o romance histórico é aquele que retrata com a maior fidelidade possível uma determinada época, seus costumes, sua forma de expressão, seus movimentos sociais, políticos, religiosos – em uma palavra, é aquele que torna claro o movimento cultural íntimo de uma determinada época. Assim, romances como O Nome da Rosa, de Umberto Eco, que retrata a Idade Média do século XIII, por exemplo, ou qualquer desses inúmeros best-sellers cujo enredo transcorre em terras brasileiras de séculos passados – O xangô de Baker Street, de Jô Soares, ou Boca do Inferno, de Ana Miranda. Não discutimos, por ora, a qualidade dos textos, mas apenas a sua aparente caracterização histórica – e aparente porque acreditamos que a inserção da narrativa, a sua ambientação, o modo pelo qual se expressam as personagens, não são dados suficientes para que possamos definir tal obra como eminentemente histórica. Na maior parte das vezes, na verdade, o fato histórico permanece apenas como pano de fundo para uma narrativa que pouco tem a ver com a época. E, se tem, é de menor importância. No caso do romance de Umberto Eco, a ambientação serve, antes dos crimes misteriosos que ocorrem na abadia, para que o autor crie relações internas do texto com outros textos, num exercício metalingüístico constante; no caso de O Xangô..., ainda que a metalinguagem também seja encontrada, em menor grau, as referências históricas ao Imperador e à corte carioca funcionam muito bem para a brincadeira jocosa que o escritor pretende: a sátira; já em Ana Miranda, as personagens é que oferecem o tom de veracidade do romance, ao encontrarmos, cruzando-se e dialogando pelas ruas de Salvador, Gregório de Matos e Padre António Vieira – e mais uma vez, o exercício metalingüístico, as abundantes citações dos poemas e trechos dos sermões.

Voltemos à pergunta, agora reformulada: estas referências metalingüísticas se mostram suficientes para que classifiquemos determinada obra como histórica? Medidas as proporções de qualidade entre os três exemplos citados, encontramos um ponto comum – e a metalinguagem é um fato casual, no sentido que pretendo dar a esta mínima investigação. Casual, pois que encontramos outros romances, obras diversas, igualmente classificadas sob o rótulo “históricas”, mas que não apresentam este exercício de linguagem: mantêm-se no âmbito das referências à época que retrata de melhor ou pior forma, como Eu, Claudius, Imperador, de Robert Graves, ou Os Demônios de Ludlum, de Huxley. Mas uma coisa todas as obras citadas têm em comum: seja pela linguagem, seja pelo ambiente, seja pela caracterização das personagens, todas partilham da verossimilhança externa à própria obra, seguindo de perto a definição de Aristóteles na sua Poética. A verossimilhança externa é a armadilha que o autor prepara com vistas a seduzir o leitor, capturá-lo em sua trama, mergulhá-lo no tempo passado, fazendo com que ele se sinta inserido e um contexto no qual não viveu, mas alimentando a impressão de que lhe é familiar e conhecido. Há o reconhecimento das referências – e se estas faltam, ou falham, ou simplesmente inexistem, a obra histórica perde a sua força e seu poder de sedução. Ainda assim, o arcabouço referencial, seja qual for, que cria esta armadilha, não passa de um pano de fundo, restringindo-se àqueles dados essenciais para que o leitor recrie, e sua mente, os movimentos, as cidades, as vestimentas, os modos de fala.

Esta introdução ao que pretendemos desenvolver aqui pode ser longa demais, mas é necessária para que possamos centrar o olhar no romance Um Deus Passeando na Brisa da Tarde, do escritor português Mário de Carvalho. Ainda que o autor afirme que seu romance não é histórico, na medida em que a cidade na qual se desenvolve a trama, Tarcisis, jamais existiu, encontramos as referências, a verossimilhança externa, tanto pelo nomes das personagens (Lúcio Valério é o duúnviro da imaginária cidade de Tarcisis, na Lusitânia do século III; Prosepino, Apito, Iunia, Rufo Cardílio – todos nomes de caráter eminentemente romano), quanto pelas referências às localidades geográficas da península (Ébora é cidade próxima a Tarcisis e, se esta é imaginária, existiu mesmo uma Ébora – hoje Évora; ou ao Estreito de Gibraltar), e pelas referências aos deuses, romanos, lusitanos e de outras culturas (Baco, Apolo, Endovélico, Mitra), sem esquecer do período histórico no qual se desenvolve a narrativa (o século II d.C., durante o governo do Imperador estóico Marco Aurélio). Tudo contribui para que o leitor sinta-se completamente imerso no ambiente e, por conseguinte, acredite em Tarcisis e suas personagens. No entanto, há uma referência que guia toda a narrativa – e que vai além das simples referências exteriores à obra: a filosofia.

O pensamento filosófico do período da decadência de Roma preenche toda a narrativa, a cada página. Não é apenas um pano de fundo, mas arriscamos a afirmação de que é ela, a filosofia estóica, marcada pelo comportamento de Lúcio Valério e pela presença constante do Imperador Marco Aurélio (seja na forma do busto presente na repartição pública de Tarcisis, ao qual o duúnviro se abraça, seja pela presença física, na rememoração de um passado ainda mais distante, quando do diálogo entre Lúcio e o Imperador, em Roma), último representante do estoicismo e autor das Meditações, um guia de comportamento moral para os homens – públicos, principalmente –, afirmamos que é esta filosofia, como dizíamos, que conduz a narrativa e seus conflitos. Conflitos que se expandem para uma esfera muito além da cultural, já que os confrontos entre romanos, mouros, judeus e cristãos são marcados fundamentalmente pela questão religiosa – ou teológica, que parece ser um conceito mais apropriado para o contexto da obra. Para melhor percebermos este encaminhamento estóico, devemos nos recordar o que afirma esta filosofia.

Segundo Ferrater Mora, em seu Dicionário de Filosofia[1], o período conhecido como estoicismo novo ou imperial, característico dos séculos finais do Império Romano, apresentava uma índole marcadamente moral e religiosa, apresentando, também, um caráter enciclopédico. Sua visão é materialista, racional e determinista, fundamentando-se, sua concepção de mundo, na realidade física. Em outras palavras, “para o estóico o mundo é essencialmente corporal”, e o universo é “um composto de elementos reais e racionais – logoi –; suas diversas partes se mantêm unidas graças à tensão produzida pela alma universal que tudo penetra e vivifca”. Esta alma é, também, material, assim como a concepção de Deus. Impossível, para um estóico, imaginar a transcendência da matéria – e daqui um dos motivos, senão o motivo principal, para os conflitos com a cosmovisão cristã, pautada principalmente na idéia transcendental de imortalidade da alma – puramente espiritual.

O elogio à racionalidade do cosmo se revela no caráter enciclopédico do conhecimento humano. Saber mais significa aproximar-se de uma natureza divina – e divina por ser, ela também, racional. Este o motivo das referências constantes a livros e a autores no decorrer da narrativa, assim como ao ato de leitura: Lúcio afirma que lê e rele seus livros (p.13); que, ao se propor uma determinada obra, a persegue até o fim (“Propus-me um livro? Há que lê-lo”, p. 15); cita Hesíodo, Virgílio, Magão e seu tratado sobre a lavoura, Demóstenes, uma obra intitulada Tyrrenika – todo um universo de leituras que forma o seu universo de conhecimento, a sua visão do mundo e da natureza. O enciclopedismo é mais do que o gosto pela erudição – é o conceito de que os livros podem explicar, como explicam para a mentalidade estóica, o mundo e seu funcionamento.

O materialismo, o realismo e o determinismo afetam diretamente a compreensão do comportamento humano. A ética estóica pretende que o homem deva viver conforme a natureza, isto é, conforme o natural, na medida em que a natureza é racional em si. Deixemos a palavra com Mora:
“A felicidade radica na aceitação do destino, no combate contra as forças da paixão que produzem a intranqüilidade. Ao resignar-se com o destino, o homem também se resigna com a justiça, pois o mundo é, enquanto racional, justo. [...] O mal consiste no que é contrário à vontade da razão do mundo, no vício, nas paixões, na medida em que destrói e perturba o equilíbrio.”

Notamos aqui o cerne do conflito entre Lúcio Valério e Iunia. O governador da cidade não pode – não consegue – aceitar uma doutrina religiosa que vá além do natural. A vontade do mundo, afinal, é, para esta filosofia, a do contínuo dinamismo de todas as coisas, e não da permanência eterna. O conceito, filosófico, torna-se religioso: para o pensamento romano, assim como o foi para o grego, os deuses assumem formas diversas – e todos os deuses, por mais móveis que sejam em suas formas e em suas vontades, têm lugar no panteão sempre crescente. Aliás, este um fato que garantiu, por mil anos, a supremacia do Império: os deuses locais eram facilmente reconhecíveis e adaptáveis para as necessidades da romanização. Não esqueçamos que a irmã mais nova de Iunia, Clélia, visita o templo de Endovélico, o deus-javali dos lusitanos. Os deuses apresentam, inclusive, suas próprias vontades, muitas vezes intransigentes – e, neste sentido, o homem é, simplesmente, dominado. Não se tem o conceito de livre-arbítrio, apenas o do destino a ser cumprido, de modo inexorável.

Para o cristão, por outro lado, o conceito de Deus, mesmo neste princípio de cristianismo, é o da imobilidade e da eternidade. Um Deus, único, que dá, em princípio, a liberdade de escolha do fiel. Um Deus, inclusive, que promete a eternidade espiritual do homem, fato que se choca com a idéia materialista (e pessimista) do estoicismo romano. O homem pode escolher o seu destino, na medida em que age com seu livre-arbítrio – a salvação ou a condenação independem da vontade divina, o que é o mesmo que afirmar que não há um destino traçado desde o princípio da vida humana.

Neste sentido, não há uma preocupação, para o estóico – e de modo fundamental para Marco Aurélio – com o destino da alma humana após a morte. O Imperador romano mantém-se rigorosamente preso à doutrina de seus antecessores: “a sorte da alma depois da morte não entra na decisão acerca do sentido da nossa vida; o dever moral se impõe por si, absolutamente, e tem em si mesmo o próprio telos”[2]. Ainda que Marco Aurélio se aproxime do pensamento cristão no que respeita ao modo pelo qual o homem deve dirigir a sua vida (caridade, amar ao próximo, agradecer a Deus, reconhecer que depende de Deus etc.), sua postura para com os cristãos é de puro estranhamento. Não compreende, de modo algum, a razão pela qual o fiel se entrega à morte com alegria, julgando, inclusive tal comportamento como teimoso, ou, como ele mesmo escreve em suas Meditações:

“Que alma está preparada para, a qualquer momento, desligar-se do corpo, extinguir-se, dissipar-se ou entrar noutra existência? E ao dizer ‘preparada’, entendo que o seja por juízo próprio, não por pura teimosia, como os cristãos, e sem fazer tragédia, porém com dignidade, para que seja convincente o exemplo dado”.[3]Este, inclusive, o comportamento de Lúcio frente a Iunia. Não compreende como uma mulher, representante da alta aristocracia romana, pode escolher ser presa com seus companheiros cristãos e, ainda por cima, entoar os cânticos de louvor enquanto todos caminham, de braços dados, em direção à prisão e à posterior condenação à morte.

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[1] MORA, J.Ferrater (2001). Dicionário de Filosofia. São Paulo : Loyola, pp. 913-915.
[2] REALE, Giovanni (1994). História da Filosofia Antiga, Vol. IV. São Paulo : Loyola, p. 120.
[3] AURÉLIO, Marco (2001). Meditações. São Paulo : Martim Claret, p. 108.

sexta-feira, março 04, 2005

por Rodrigo R. Pedroso

Faz algumas semanas, meu estimado amigo André de Oliveira publicou, aqui no Oito Colunas, o artigo "A Igreja em xeque", e pediu-me que eu fizesse algumas considerações. Na verdade, eu mesmo queria muito emitir alguma opinião sobre o texto, e disso fui impedido, não apenas por uma vida anormalmente assoberbada de ocupações, quanto pela espera do momento oportuno e, em especial, das palavras oportunas, dado o receio que eu tinha de dizer algo que pudesse desagradar um amigo que tenho em tão alta conta.

No artigo a que me refiro, o autor parte do filme "Jesus de Nazaré", de Franco Zefirelli, para distinguir, entre os judeus da época de Jesus, três diferentes posicionamentos: aqueles que se acumpliciam com a dominação romana, os que pretendem libertar o povo de Israel através de uma revolução violenta e da tomada do poder político, e aqueles que seguem a via de transformação interior e espiritual ensinada por Jesus. O autor do texto entende que o mundo continua dividido nesses três grupos, e que a Igreja é chamada a decidir se quer pertencer ao terceiro ou ao segundo. Deplora, ainda, o fato da Igreja aparentemente estar mais preocupada com a cobiça do ter, do que com a ambição do poder.

Devo dizer, todavia, que a riqueza e o poder não se contrapõem, mas pertencem ao mesmo gênero. Ter muito dinheiro não deixa de ser uma forma de ter poder -- "O rico manda os pobres, e o que toma emprestado torna-se escravo do que lhe empresta" (Prov 22,7). Desculpem-me pela indelicadeza da expressão, mas o fulano que é rico só não tem poder quando é muito burro. E se o fulano é rico, mas é burro, logo um mais esperto (não necessariamente um mais forte) poderá lhe tirar toda a riqueza. Ademais, não há como organizar qualquer movimento revolucionário, sem ter dinheiro para financiá-lo -- o que mostra a falácia de todas as revoluções promovidas em nome dos "pobres". O poder acompanha a riqueza, assim como a riqueza acompanha o poder. E, acima deles, está a inteligência. O fulano pode ser rico e poderoso, mas, se for burro, isso nada lhe adianta e, a curto ou longo prazo, perderá tanto o poder e a riqueza: "Às vezes sai um do cárcere e dos ferros para ser rei, e outro que nasceu rei acaba na miséria" (Ecl 4,14).

De modo que não considero distintas a cobiça do ter e a do poder. Ambas, na verdade, tendem ao mesmo objeto: o avarento acumula dinheiro porque isso lhe dá poder; quem cobiça o poder muitas vezes o faz para controlar a riqueza alheia. Não se pode dizer, portanto, que o desejo de poder seja pior ou melhor que o desejo da riqueza. Vale lembrar, também, que Judas não traiu Jesus por poder, mas por dinheiro, e que ele já tinha há muito um pendor especial pelo vil metal nos é informado pelos Evangelhos, que contam que ele "era ladrão e, tendo a bolsa, roubava o que se lançava nela." (Jo 12,6)

Na verdade, o problema não está no poder nem na riqueza, mas no seu desejo imoderado e desordenado, que nasce, penso eu, da falta da humildade. Os leitores provavelmente não sabem, mas o autor destas linhas já militou na esquerda, no final da adolescência e no começo da juventude. Talvez o tenha feito por contraposição ao meu pai, que sempre foi um homem de posições bastante conservadoras. O fato é que sair da esquerda e libertar-me de seus preconceitos foi um processo relativamente longo e doloroso, que passou pela leitura das obras de Olavo de Carvalho, pelo aprofundamento no estudo do Magistério da Igreja e pela experiência concreta e decepcionante no movimento estudantil. Todavia, a ruptura definitiva com o socialismo me veio mesmo quando ouvi, numa aula sobre Sto. Tomás de Aquino, uma frase do Angélico Doutor: "É sinal de presunção, e não de sabedoria cristã, querer colocar-se acima dos outros para lhes fazer o bem". Esta frase foi, para mim, como uma sentença condenatória, um soco na alma.

Vejam bem que o Aquinatense não reprova nem o poder, nem a riqueza, mas a presunção de que somos melhores que aqueles que os detém. Afinal de contas, se o fulano quer mesmo fazer o bem, ele não precisa ter poder sobre ninguém, nem tampouco de riquezas -- "Ninguém é tão rico que não careça dos outros, ninguém é tão pobre que não possa, em alguma coisa, ser útil a outrem", dizia o Papa Leão XIII (Encíclica Graves de Communi, 22). O Evangelho não coloca óbice algum contra quem queira trabalhar para um mundo melhor, só impõe a condição de que, se o fulano quer mesmo melhorar o mundo, que comece de onde ele está, na posição social em que ele se encontra, com os meios de que ele atualmente dispõe.

A partir da frase de Sto. Tomás, gostaria de tecer alguns comentários também ao artigo de Armando Valladares, "João Paulo II, Cuba e um dilema de consciência", publicado no portal Mídia sem Máscara, em 17 de janeiro deste ano (http://www.midiasemmascara.com.br/artigo.php?sid=3220). Para quem não conhece, Valladares é o autor do livro "Contra toda Esperança", em que narra os 22 anos que passou como preso político do regime cubano, e cuja leitura a todos recomendo. Todavia, no artigo citado, Valladares lamentavelmente deu um exemplo daquilo que, segundo Sto. Tomás, não se deve querer fazer: colocar-se acima dos outros para fazer o bem.

No artigo a que me refiro, Valladares procura fazer crer que o reconhecimento de aspectos positivos do regime cubano, por parte do Papa, levaria os católicos cubanos a um suposto "dilema de consciência". Trata-se, evidentemente, de uma tempestade em copo d'água, uma vez que a Igreja não mudou seus ensinamentos a respeito do comunismo, nem o Papa negou aos católicos cubanos o direito de se opor ao regime. Não cabe ao Papa derrubar governos, e se os cubanos não o fazem, o Papa deve procurar manter relações amistosas com o governo estabelecido, seja ele qual for.

Eu fico imaginando o que Valladares quer que o Papa faça. Convocar todos os cubanos para uma guerra santa contra Fidel? É, por acaso, esse o papel do Papa? Que consequências acarretaria, para o povo cubano e a Igreja em Cuba, um pronunciamento imprudente e mais atrevido do Papa contra o regime? O Papa está fazendo o que ele pode: já que o Valladares não consegue tirar o barbudo de lá, vamos pelo menos tentar fazer amizade com o homem, para ver se conseguimos salvar alguma coisa.

No fundo, é muito fácil para o Sr. Armando Valladares fazer-se crítico e juiz dos atos do Papa, estando bem seguro em seu exílio norte-americano. O difícil é estar na pele do Romano Pontífice, responsável pela Igreja no mundo inteiro, e não somente em Cuba. Na verdade, é difícil exercer o poder. Como dizia Platão, "se surgisse uma cidade de homens bons, é provável que nela se lutasse para fugir do poder, como agora se luta para obtê-lo" (A República, Livro I, p. 30. São Paulo, Nova Cultural, 1997). Esta é uma das razões pelas quais devemos ser extremamente prudentes em julgar nossos superiores, ainda mais quando se trata do Chefe visível da Igreja. Eu poderia até criticar o Papa, mas quem garante que, se eu estivesse lá, faria algo melhor?

É por essa razão que, de minha parte, resolvi seguir este preceito: jamais criticar alguém quando eu não tenho absoluta certeza de que faria algo melhor em seu lugar. Trata-se de simples consequência lógica da constatação de Sto. Tomás: "É sinal de presunção, e não de sabedoria cristã, colocar-se acima dos outros para lhes fazer o bem". Não se pode negar que criticar e julgar uma pessoa é colocar-se acima dela. E o cristão preocupa-se antes do mais com a própria vida, com os seus próprios deveres, e não com os alheios. Não é sinal de sabedoria cristã ficar pensando: "Se eu fosse o Papa, se eu fosse o Bush, se eu fosse o Lula, faria isto ou aquilo..." Eu não sou o Papa, eu não sou o Bush, eu não sou o Lula. Eu sou o Rodrigo. E, estando o mundo como está, o que o Rodrigo, estando onde ele está, tem a obrigação de fazer?

As pessoas que constróem não são aquelas que estão preocupadas com o que os outros fizeram ou deixaram de fazer. São aquelas que, utilizando todos os meios lícitos que têm à mão, procuram remediar as carências da humanidade de seu tempo, na posição e no lugar em que a Providência as colocou.